O que fez a revista científica Annals of Internal Medicine, do Colégio Americano de Medicina, ao receber o relato de dois crimes horríveis (assédio sexual e racismo) cometidos contra pacientes anestesiadas em hospitais universitários?
Cedeu ao corporativismo médico e recusou o texto, sob o argumento de que ele mancharia a reputação da categoria? Varreu o artigo para o fundo da gaveta e os crimes para baixo do tapete? Nem uma coisa nem outra.
Depois de uma intensa discussão, os editores decidiram checar a história e publicar, na semana passada, o corajoso ensaio produzido por um professor.
O título não poderia ser melhor: “Nossos segredos de família”. Para evitar a exposição das pacientes, dos estudantes e dos profissionais envolvidos, a publicação optou por omitir os nomes verdadeiros. Se os casos serão investigados e punidos, é uma questão para a justiça.
Para os médicos responsáveis pela revista, o mais importante é abrir a discussão sobre modelos negativos de comportamento. Numa profissão extremamente hierarquizada, eles tendem a deformar o caráter e a prática dos futuros médicos. É uma discussão da maior relevância.
Ainda que os casos relatados sejam exceção, eles precisam ser conhecidos. Acompanhe comigo:
Um aluno de medicina entrou numa sala de cirurgia para assistir a uma remoção de útero (histerectomia) numa universidade americana. O cirurgião responsável preparava a vagina da paciente para o procedimento. Com uma pinça estéril, mergulhou bolas de algodão em um antisséptico. Técnica correta. Comportamento desprezível.
Enquanto o médico limpava e esfregava os lábios vaginais e a face interna das coxas, ele olhou em direção ao aluno, deu uma piscadinha e disse:
“Aposto que ela está gostando disso”. Em seguida, caiu na gargalhada.
A covardia desse abuso sexual de uma paciente anestesiada só veio à tona porque um professor de humanidades propôs uma reflexão inusitada aos estudantes do quarto ano de medicina.
Numa aula sobre a virtude do perdão, ele perguntou se algum dos estudantes precisou perdoar alguém por uma experiência vivida no contexto clínico ou se alguém ainda não havia conseguido perdoar.
Silêncio constrangedor. O professor voltou à mesa, sentou na cadeira e, propositalmente, contemplou a paisagem através da janela. Sem pressa.
Depois de uma longa espera, um dos alunos tomou coragem e disse que algo imperdoável acontecera com ele. Contou a história bizarra acima e desabafou: “Estava lá apenas tentando aprender”, disse. “O cara era nojento. Isso ainda me incomoda.”
O professor prosseguiu:
“Quando o cirurgião fez aquilo, você também riu?”
O aluno confessou:
“Sim, eu ri, mas o que você queria que eu fizesse?”, disse. “Alguma vez você esteve numa situação como essa?”
Em vez de posar de baluarte da ética e do bom comportamento, o professor revelou que ele próprio havia presenciado algo semelhante quando estava no terceiro ano de medicina.
Tudo aconteceu no departamento de obstetrícia, onde ele tinha acabado de ajudar a fazer um parto. A garotinha nasceu e ele mesmo a colocou nos braços da mãe, uma imigrante hispânica. Retirou a placenta, colocou num recipiente e viu que ela estava intacta.
Ao voltar-se para a paciente, desesperou-se com o sangue que jorrava pela vagina. Chamou o médico responsável. Ele veio rapidamente e observou que não havia nenhuma laceração no períneo. Colocou a mão sobre o abdome e começou a massagear o útero. O sangramento continuava.
O médico concluiu que a mulher estava sofrendo de atonia, uma condição grave, muitas vezes fatal, em que o útero não consegue contrair adequadamente suas fibras musculares.
Rapidamente, o obstetra determinou que a mulher fosse anestesiada e recebesse drogas para conter o sangramento. O estudante e outro colega foram instruídos a manter bem abertas as duas pernas da paciente.
Foi quando o médico colocou a mão esquerda dentro da vagina e começou a pressionar o útero. Apoiou a outra mão sobre o abdome e massageou o útero energicamente entre as duas mãos.
Funcionou. Depois de alguns minutos, ele sentiu o útero contrair e endurecer. “Isso, menina. Assim é que eu gosto. Um útero bem apertado”, disse o médico. Depois de toda a tensão, ele havia conseguido salvar a paciente. O estudante estava encantado.
O deslumbramento durou pouco. O obstetra ergueu a mão direita e, com a mão esquerda ainda dentro da vagina, começou a dançar e a cantar “La Cucaracha”, uma referência ofensiva à origem latina da paciente. O aluno começou a rir e cantarolar com ele.
Até que o anestesista, enojado, gritou: “Parem com isso, seus idiotas!”
Depois da aula em que relembrou o episódio, o professor decidiu que era hora de quebrar o silêncio. Escreveu o artigo e o encaminhou para publicação. No editorial que acompanha o artigo, Christine Laine, editora-chefe do Annals of Internal Medicine, afirmou:
“Se esse ensaio encorajar um único médico a agir como o anestesista, já terá valido a pena publicá-lo”, disse. “Todos nós precisamos ter a força necessária para chamar nossos colegas de ‘idiotas’ quando esse rótulo for apropriado. Devemos isso a nós mesmos, à nossa profissão e especialmente aos nossos pacientes”.
Quando veremos um mea culpa tão maduro quanto esse ser publicado no Brasil? Quebrar o silêncio em torno das humilhações e dos abusos cometidos contra os pacientes é obrigação de todos os médicos que honram a profissão.
(Cristiane Segatto escreve às segundas-feiras)