Em entrevista exclusiva, os operadores do Direito norte-americanos e especialistas na aplicação de leis protetivas para coibir a violência contra as mulheres, Cindy Dyer e John Wilkinson, comentam os desafios que os profissionais enfrentam para traduzir direitos em práticas. Apontam ainda caminhos que podem auxiliar na efetivação da Lei Maria da Penha no Brasil e destacam as importantes inovações que ela trouxe.
Cindy e John estiveram no Brasil em março deste ano, onde conduziram Workshop Internacional Violência contra a Mulher, Parceria Avon Foundation/Vital Voices pelo fim da violência doméstica. Resultado de uma iniciativa inovadora internacional que foi cuidadosamente adaptada à realidade brasileira, antes de acontecer primeira vez no País, o workshop já havia sido adaptado e ministrado em outros países, como México, África do Sul, China, Camarões e Nepal em 2014.
A metodologia foi originalmente desenvolvida pelas organizações norte-americanas Vital Voices e AEquitas – em um projeto mais amplo da Global Partnership to End Violence Against Women, composta pela Avon Foundation for Women, Vital Voices e o Departamento de Estado dos EUA.
No Brasil, o evento – fruto de uma parceria entre Instituto Avon, Instituto Patrícia Galvão e as organizações norte-americanas Vital Voices e AEquitas – reuniu 55 representantes do Poder Judiciário, Ministério Público, Defensoria Pública, Segurança Pública e profissionais dos serviços públicos de saúde e assistência psicossocial e da sociedade civil que atuam diretamente no acolhimento, proteção, investigação e julgamento de casos de violência doméstica e familiar contra mulheres.
O workshop integra as ações da Campanha Compromisso e Atitude pela Lei Maria da Penha, da qual o Instituto Avon é parte desde 2012.
Confira abaixo os comentários dos especialistas:
A mulher no centro do caso
Cindy – Colocar a mulher no centro do caso significa pensar, a cada passo do processo, nas consequências para a vítima. Muitas vezes pensamos em como conseguir provar nosso caso, mas não pensamos no impacto direto que nossas ações terão sobre a vítima. Precisamos refletir: será que é necessário agir dessa maneira? Ou não? Manter a vítima no centro significa não pensar na vítima só quando é hora de testemunhar, mas pensar nela em todos os outros passos que tomamos no processo e que podem impactá-la e a sua segurança.
John – É exatamente isso. Quando colocamos o caso antes da vítima, perdemos de vista o quadro maior do que significa justiça para aquela mulher. Concentramo-nos em ganhar o caso e não no que acontece se ganharmos o caso. Qual é o impacto para a mulher? Isso vai deixá-la mais segura? E se a vítima tornar-se mais vulnerável? Qual é a qualidade da Justiça que ela terá? É assim que precisamos lidar com esses casos. Os casos são diferentes e não se pode lidar com todos eles da mesma maneira.
Medidas protetivas como ferramenta de prevenção
Cindy – A beleza da medida protetiva é ser uma ferramenta ao mesmo tempo preventiva e protetiva. Muitas vezes, o sistema de Justiça criminal é acusado de ser reativo, de não fazer o suficiente para prevenir crimes e colocar todo o foco em punição e responsabilização. Penso que focar em punição e responsabilização é, em si, uma medida de prevenção, ao mandar a mensagem de que não se toleram mais crimes de violência contra as mulheres. Mas a ordem protetiva também pode ser usada antes de a violência tornar-se pior. Para evitar que a violência aumente, a medida protetiva pode ser usada mais amplamente, sem estar vinculada a um boletim de ocorrência. É preciso garantir que a mulher possa conseguir uma medida protetiva sem já ter estado ou estar em meio a um caso civil ou criminal.
John – A medida protetiva dá às vítimas uma outra opção. Muitas não querem prosseguir com o caso criminal, não querem que o agressor vá para a cadeia ou que enfrente uma condenação, e a medida protetiva é uma opção que as empodera um pouco mais. Faz com que se sintam mais seguras para enfrentar a situação, sem passar por um processo que elas não querem. Empodera a vítima porque é muito mais fácil conseguir uma condenação por violação de medida protetiva, que frequentemente é muito mais simples de provar do que a violência doméstica em si.
Trabalho em rede é fundamental
Cindy – As vítimas nem sempre recebem todos os serviços de que necessitam. E, a menos que trabalhemos juntos, isso não vai acontecer, porque nenhum de nós pode oferecer tudo de que uma vítima precisa. Policiais e promotores podem oferecer justiça e proteção, mas não podem oferecer abrigo ou treinamento para um emprego. Da mesma forma, as ONGs ou as instituições do Estado oferecem serviços como abrigo, realocação, comida, proteção para as crianças, mas não podem levar o agressor para ser responsabilizado em um tribunal. Além disso, cada uma de nossas funções fica muito mais fácil se pudermos contar com nossos colegas em outras áreas cumprindo seus papéis. É muito mais provável que uma vítima esteja disposta a vir para o tribunal e nos ajudar a processar e levar à condenação seu agressor se suas outras necessidades estão sendo satisfeitas.
John – O melhor de trabalhar com uma equipe colaborativa é conhecer o que meus colegas fazem e especialmente aprender sobre o comportamento da vítima. Foi assim que entendi por que minhas vítimas não iam ao tribunal, por que elas mudavam suas histórias e por que não gostavam de mim quando as ajudava a testemunhar. Depois que começamos a trabalhar colaborativamente passei a entender melhor meu próprio trabalho, ou seja, que eu não deveria forçá-las a testemunhar, por exemplo, ou que deveríamos descobrir outros meios de ajudar a vítima.
Quando a vítima não coopera
John – Deve-se oferecer suporte às vítimas e dar tudo o que elas precisam para continuar no caso. Mas sabemos que muitas não permanecerão por toda a investigação e a acusação. Então, sabendo disso, investigamos como se fosse um caso de homicídio – que é um tipo de caso em que sabemos que a vítima não estará lá para testemunhar. Então documentamos tudo o que pudermos, tirando fotos ou gravando entrevistas ou fazendo com que sejam registrados todos os depoimentos, tanto da vítima quanto do agressor, procurando por toda testemunha possível, identificando pedaços de informação, como registros médicos e a gravação da ligação para a emergência. São coisas bastante precisas e que podem ser usadas em julgamentos. O objetivo é identificar todos os tipos de evidências que podem ser levadas a julgamento sem a presença da vítima. A melhor maneira de começar é na chamada “hora de ouro”, quando você chega na cena, no momento em que a vítima é, tanto quanto possível, mais direta e precisa sobre as informações, e é também quando está mais aberta aos recursos e suporte que podemos oferecer.
Cindy – Trabalhei em muitos casos em que as vítimas mudaram de ideia e não queriam que o caso fosse adiante. Mas para a segurança da comunidade e das crianças, precisamos prosseguir de qualquer maneira. Há também muitas situações em que a vítima quer que o caso siga adiante, mas não quer estar envolvida, porque não quer estar novamente em situação de perigo. E se testemunhar ela realmente pode ficar em perigo, porque não se tem certeza sobre a condenação. E se houver condenação e o agressor for para a condicional, não há garantia de que aquela vítima vai estar segura. Ela tem razão para estar preocupada, pois conhece o agressor melhor que nós. Então penso que precisamos ser capazes de tirar esse peso comprovatório da vítima e colocar sobre o Estado, que é de fato onde deveria estar em primeiro lugar.
A Lei Maria da Penha é muito boa e traz inovações importantes
Cindy – Não sou uma especialista na Lei Maria da Penha, mas acho que é uma lei muito boa e eu adoro o fato de que inclui o aspecto das medidas protetivas. Também adoro o fato de que – e ainda não vi isso em outros países – ela garante um advogado para a vítima. Isso é importante porque em muitas situações a vítima sente que não tem um advogado, porque o promotor representa o melhor interesse do Estado e da comunidade e o defensor representa o melhor interesse do réu e ninguém representa o melhor interesse da vítima Então, realmente considero muito bom que a Lei Maria da Penha garanta um advogado que a vítima não tenha que pagar. Esse é um dos melhores aspectos da lei.
Talvez também haja aspectos que vocês irão querer melhorar e modificar. Fazendo um paralelo com a Lei de Violência contra as Mulheres de 1994, nos Estados Unidos, na época ficamos muito orgulhosos por termos conseguido aprovar, mas depois modificamos essa lei, e cada vez que era revisada ficava melhor, porque ouvíamos os movimentos e os profissionais da Justiça criminal que lidam com os casos. Uma mudança foi que percebemos que nossa população nativa – norte-americanas nativas ou nativas do Alaska – vive muitas vezes sob jurisdições ligeiramente diferentes. Tivemos então que fazer mudanças na aplicação da lei para proteger especificamente essa população. Mais recentemente percebemos que não estávamos dando atenção adequada à população LGBT, por isso acrescentamos alterações especificando que os serviços deveriam estar também disponíveis para essa população. Suspeito que vocês irão precisar disso também com relação à Lei Maria da Penha, porque à medida que forem implantando a lei mais amplamente vocês encontrarão coisas que vão querer mudar para torná-la ainda melhor.
Um processo em construção
Cindy – Entre outras coisas, a Lei de Violência contra as Mulheres criou fundos para melhorar a rede de serviços para as vítimas e também para que o sistema de Justiça criminal pudesse contar com juízes e promotores especializados, que receberam treinamento por pessoas qualificadas. Parte dos recursos também foi usada para melhorar a informatização dos dados e, com isso, as medidas protetivas passaram a ser informadas imediatamente para toda a rede, inclusive os policiais nas ruas e de outros municípios. Outra coisa importante foi que, para liberar os recursos, era preciso que houvesse uma rede coordenada. Isso foi um grande incentivo para a cooperação entre as instituições envolvidas no atendimento às vítimas. O melhor de tudo foi que, mesmo depois que o período de financiamento acabou, essas forças-tarefas continuaram atuando. As equipes que haviam se formado para receber verbas federais continuaram a trabalhar em conjunto porque nem podiam mais se lembrar como era possível trabalhar sem ser de forma articulada.
Ao longo destes anos estamos buscando que o processo de implementação da lei mude as atitudes e a cultura em relação à violência contra as mulheres nos Estados Unidos, que está se tornando uma questão que as pessoas não olham mais com desprezo ou fazendo piadas. Em certa media é algo como o racismo. Hoje é preferível ser condenado por dirigir embriagado do que por agressão, pois isso diz muito sobre uma pessoa. Criamos uma sociedade que é menos tolerante em relação à violência contra as mulheres. Ainda é mais tolerante do que eu gostaria que fosse, mas é bem menos tolerante do que já foi um dia. E digo isso da perspectiva de alguém que esteve no sistema de Justiça antes e depois da aprovação e implementação da lei. Às vezes as pessoas sentem-se frustradas, porque as leis são aprovadas e elas não veem as mudanças no ano seguinte. Aprovar a lei é um grande primeiro passo, mas não basta para realizar a mudança. Isso acontece somente com a implementação da lei no dia a dia, no passo a passo, nos tribunais locais e nas cidades por todo o país. Realmente acredito que é preciso insistir nessa implementação, exercendo pressão suave, porém incansável, e a mudança virá.
Fonte/Foto: Portal Compromisso e Atitude