As cartas escritas por mulheres acolhidas na Casa Abrigo revelam o impacto profundo da violência doméstica — uma realidade que vai muito além das agressões físicas. Ali, em cada relato, fica evidente que, muitas vezes, até um simples elogio pode marcar o início da reconstrução de suas vidas.
O serviço, que integra a rede de proteção às mulheres vítimas de violência física, psicológica, sexual, patrimonial, moral ou tentativa de feminicídio, oferece um espaço seguro e de acolhimento. “O mais especial foi a forma como fui tratada. Foi bom, muito bom, receber elogios constantes de pessoas que eu não conhecia”, escreveu uma das mulheres atendidas.
A violência doméstica, como explica a titular da Secretaria de Assistência Social e dos Estados de Direitos Humanos (Sead), Patrícia Cozzolino, raramente começa com agressão física. “Ela começa com observações negativas sobre o corpo, evolui para violência psicológica, para o demérito. Em muitos casos, até as crianças repetem isso para a mãe: ‘Ah, você é louca mesmo, mãe, bem que o pai fala’. Esse ciclo vai crescendo até se tornar uma violência física.”
Para muitas mulheres, reconstruir a autoestima é um desafio enorme. “Hoje, transformei a minha tristeza em felicidade, porque descobri que sou mais forte do que isso”, escreveu outra mulher. Em outro relato, a superação transborda: “Me sinto mais feliz, mais realizada, mais forte, graças a vocês. Me amo mais, muito mais.”
Um dos pontos mais destacados nos textos de despedida é o curso de defesa pessoal, oferecido na Casa Abrigo. “Elas gostam muito. Não que isso vá resguardar 100% a vida, mas é uma forma de ver que podem se defender numa situação de risco”, afirma Daniela Galvão, coordenadora da Casa Abrigo. Segundo ela, o curso é parte essencial do processo de empoderamento feminino. “São mulheres que foram vitimadas durante tanto tempo que carregam um ar de submissão. A defesa pessoal devolve a elas um olhar de potencialidade.”
A gravidade da situação se confirma em casos como o de uma mulher que, após se separar, começou um novo relacionamento. Certo dia, indo para o ponto de ônibus, foi surpreendida pelo ex-marido, que a atacou covardemente a facadas, numa tentativa de feminicídio. Ela sobreviveu, mas precisou refazer sua vida na Casa Abrigo. “Mesmo separada, o ex-marido se acha dono da mulher”, destaca Daniela.
A violência também se disfarça de cuidado. “Desde cedo, as meninas são ensinadas que não podem usar determinada roupa ou cortar o cabelo, como se fosse cuidado, quando na verdade é controle”, alerta Patrícia. “Vivemos numa sociedade patriarcal, machista e violenta, e isso precisa ser combatido desde cedo.”
Para acolher essas mulheres e seus filhos, a Casa Abrigo em Campo Grande foi remodelada e ampliada, contando hoje com cerca de 50 servidores. Além de segurança, o local oferece atendimento médico, apoio psicossocial, cursos profissionalizantes e pedagoga para manter a continuidade dos estudos.
“Temos educadora física para crianças e mulheres, aulas na piscina, atendimento psicológico, convênios com a UFMS e, futuramente, com a UEMS, para garantir acesso à educação superior”, afirma Patrícia.
Apesar de todo o cuidado, estar na Casa Abrigo também é desafiador. “Houve dias difíceis, pois me sentia injustamente privada da minha liberdade, mesmo com tudo de bom que recebi”, desabafou uma das acolhidas.
Em 2024, a Casa Abrigo atendeu 61 pessoas — 21 mulheres e 40 crianças. Elas chegam ao local após medidas protetivas, geralmente com o apoio da Casa da Mulher Brasileira, na Capital, ou pelo Ceamca, no interior.
O tempo de permanência na Casa Abrigo é de até seis meses. Para quem não pode voltar para casa, o serviço garante suporte financeiro: quatro salários-mínimos (R$ 7.590) para mobiliar a nova residência e um salário-mínimo (R$ 1.512) por até 12 meses.
Patrícia reforça: “Ninguém quer viver em isolamento, mesmo num lugar acolhedor como esse. Não deveríamos precisar de um espaço assim. Mas ele é essencial para proteger vidas.”
A Casa Abrigo é mais do que um teto seguro: é um espaço de reconstrução, onde cada mulher pode redescobrir sua força e recomeçar.
Fonte: Campo Grande News