O Observatório da Mulher Ceará divulgou dados sobre como essa violência afeta o exercício do mandato das parlamentares cearenses
Na tribuna da Câmara Municipal de uma cidade cearense, uma vereadora sobe a tribuna para defender uma demanda da população: a instalação de ar-condicionado no transporte escolar. A reivindicação não é nova, sendo inclusive comum em muitos outros municípios do Estado. Em resposta, um colega vereador pede a proibição da fala da parlamentar. O motivo? A exigência de melhorias é ‘coisa de mulher’, ‘fricote’.
Em outro ponto do Ceará, uma vereadora recebe o apelido de “mulher-macho” por se posicionar nas sessões plenárias — conduta que deveria ser comum a qualquer parlamentar no exercício do mandato. O autor é o mesmo vereador que “tentou impedir minha fala” e procura “em todos os espaços me desqualificar”, relata a parlamentar.
Mas elas não são apenas alvos de ataques diretos. “Houve momentos de consultarem, antes de falar comigo, meu irmão ou marido”, diz uma vereadora cearense sobre o início do exercício do mandato parlamentar. Outra vereadora precisou ouvir que era “apenas uma manobra do pai para voltar ao poder”. “(O vereador) disse que eu era apenas um ‘mecanismo’, ele utilizou essas palavras”, diz.
“Sempre preciso estar acompanhada de uma figura masculina, de marido ou irmão, em eventos ou reuniões para ser vista. Em algumas decisões políticas, votações importantes, mudanças de partidos, articulação política, acordos, sempre o convite ou a conversa é direcionado ao meu irmão, como se eu fosse sua acompanhante ou subordinada a ele”, conta mais uma parlamentar.
Os cinco relatos foram feitos de forma anônima por vereadoras de cidades cearenses ao Observatório da Mulher Cearense, vinculado à Procuradoria Especial da Mulher da Assembleia Legislativa do Ceará (Alece). Ao todo, 46 mulheres que exercem mandato como vereadoras falaram sobre os episódios sofridos de violência política de gênero, crime tipificado em 2021 para uma conduta repetida desde os primeiros momentos de liberação dos direitos políticos para as mulheres — e mesmo antes.
60% das parlamentares já sofreram violência política de gênero
“São ataques constantes à minha honra, como ser chamada de vagabunda”. “Fui gritada e mandada calar a boca em sessão plenária”. “O Presidente da Câmara cortou a minha fala, cortando o microfone”. “Tentativa de impedir meu trabalho (com) calúnia, intimidação, humilhação”.
Os relatos estão compilados no artigo “Direitos Sociais e Participação Política de Gênero: Relatos de Vereadoras do Ceará”, parte da coletânea “Em Defesa das Mulheres”, lançada no final de janeiro pela Procuradoria Especial da Mulher.
As histórias das violências sofridas por mulheres vereadoras foram colhidas durante pesquisa do Observatório da Mulher Cearense. Nela, foi medido como a violência política de gênero afeta a atuação das mulheres parlamentares no Ceará. No total, 105 vereadoras participaram da pesquisa. Muitas delas, atuam como procuradoras da Mulher nas câmaras municipais de suas cidades.
Segundo os dados, 60% das vereadoras afirmaram que foram vítimas de violência política por serem mulheres. O estudo pontua que essa violência vai além daquela considerada flagrante, como agressões físicas. “Ela se revela em manifestações mais sutis, que, muitas vezes, passam despercebidas, mas têm um impacto profundo na participação e na experiência das mulheres nesse meio”, cita o relatório.
Por exemplo, 72% delas já foram a única mulher em uma sala, comissão ou grupo de trabalho. Mais da metade se considera excluída de espaços de decisão pelo fato de ser mulher — o percentual de vereadoras que afirma ter sentido isso é de 51%. Dentre as parlamentares, 68% concorda, parcial ou totalmente, que já teve a atividade política dificultada ou limitada por ser mulher. E 44% das vereadoras costuma ter a fala interrompida por colegas do sexo masculino.
“E um dado que pode parecer pequeno, mas é muito relevante, é que quase 8% delas já sofreu alguma violência sexual, alguma aproximação física, algum toque não autorizado ou alguma proposta de natureza sexual enquanto elas estavam exercendo o seu cargo de parlamentar, de vereadora”, ressalta a gestora de políticas pública e uma das responsáveis pela pesquisa, Bárbara Oliveira.
Violência não é exclusividade das vereadoras
A violência política de gênero não é exclusividade das vereadoras. A deputada estadual licenciada e secretária das Mulheres do Ceará, Lia Gomes (PSB), conta que identifica um dos pontos trazidos pela pesquisa na própria trajetória parlamentar: a exclusão de espaços de decisão, por ser mulher. “Eu sinto que a presença da gente no ambiente ‘deles’ é como se fosse uma coisa que incomoda, porque eles passam a fiscalizar o que eles falam, porque, quando eles estão entre si, eles falam o que pensam”, disse em entrevista à Live do PontoPoder.
Ela pontua que muitas dessas decisões são tomadas em espaços de “lazer” — no gabinete do colega, em almoço ou jantar, e mesmo no futebol, “que as mulheres nunca são convidadas”.
“Naquele ambiente ali, normalmente, nós, mulheres, não somos incluídas. Isso foi algo que pra mim pegou muito forte. (…) Em festas, no Ceará, divide: os políticos para um lado e as esposas para o outro lado. Para mim, que sou quase sempre a única mulher da política, me resta ou ficar com as mulheres, esposas e namoradas, ou vou, como única mulher, para o grupo dos homens da política. (…) Eu sinto essa sensação de exclusão, sutil”.
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Legenda: Nota Técnica com dados sobre a violência política de gênero contra vereadores cearenses foi lançada no dia 30 de janeiro
Foto: Divulgação
A data do lançamento foi também a despedida de Lia Gomes do cargo na Alece. No dia 30 de janeiro, ela assumiu o comando da Secretaria das Mulheres do Governo do Ceará. Quem assume a Procuradoria Especial da Mulher é a deputada estadual Juliana Lucena (PT).
A parlamentar petista foi vítima de violência política de gênero em 2023, ao receber ataques do então vereador da cidade de Russas, Mauricio Martins. O agora ex-parlamentar proferiu ataques a Lucena e a duas colegas de bancada, as também deputadas estaduais Larissa Gaspar (PT) e Jô Farias (PT).
Na época, em discurso na tribuna da Câmara de Vereadores, ele usou os termos “lagarta encantada” e “borboleta encantada” para se referir às deputadas, alegando que as parlamentares “vendem ilusão”. “Não venham essas mulheres que são lagartas, as borboletas encantadas, que só aparecem no dia internacional da mulher. Só conhece as mulheres no dia internacional da mulher. Aí bota um palco no meio das praças, vão mentir, dizer que tem programa isso, programa aquilo”, disse.
O caso acabou se transformando em um marco: foi a primeira condenação por violência política de gênero no Ceará, após a tipificação da conduta em 2021. A pena de reclusão, no entanto, foi substituída por multa e prestação de serviços à comunidade. “Infelizmente, essa não foi uma experiência isolada na minha trajetória política”, conta a deputada Juliana Lucena. O novo papel agora, como procuradora da Mulher, irá buscar usar dessa vivência para “garantir que outras mulheres tenham mais segurança e respaldo para exercer os seus mandatos”.
“Vamos fortalecer o diálogo com parlamentares municipais e presidentes de câmaras para incentivar a criação de procuradorias da mulher em todas as cidades cearenses. E isso é essencial para ampliar o alcance de trabalho em todo o estado do Ceará”.
Segundo ela, a meta na nova gestão da Procuradoria é dar continuidade aos trabalhos do Observatório da Mulher Cearense, também como forma de continuar a desenvolver estudos e pesquisas que contribuam “na formulação de políticas públicas mais eficazes”.
“O Observatório nos ajudará a entender melhor as demandas, as necessidades, permitindo a criação de ações mais assertivas para proteger e empoderar as mulheres na política e na sociedade”, disse. “Além disso, ao compartilhar minha história, eu quero encorajar outras mulheres a denunciarem e resistirem, promovendo um ambiente político mais inclusivo, respeitoso e livre de violência”, pontua.
Fonte: Diário do Nordeste