Aproximava-se de completar, na terça-feira (5), uma hora de discursos sobre o projeto de lei de uso e ocupação de solo na Câmara Municipal de Niterói (RJ) quando pela primeira vez os vereadores e o público ouviram a palavra “mulheres”.
“Como a gente discute um plano urbanístico numa cidade que nos últimos anos aumenta a violência contra as mulheres sem falar do direito de ir e vir? Com ruas escuras que as mulheres não podem circular depois de 22h, porque a prefeitura joga a culpa na Enel [concessionária de energia], e a Enel na prefeitura”, disse a vereadora trans Benny Briolly (PSOL), única mulher integrante da Câmara Municipal.
A representação solitária de Briolly entre os 23 vereadores da cidade não é exceção no Brasil, mas se torna simbólica devido a uma singularidade: Niterói está no topo das cidades do país com maior proporção de mulheres entre os eleitores, praticamente empatada na liderança com Maceió —tem 55,46% de eleitoras, ante 55,48% na capital alagoana.
O perfil da atual legislatura repete o histórico de Niterói. Pesquisa feita pela pedagoga Adriana Valle Mota para o mestrado em Política Social pela UFF (Universidade Federal Fluminense) mostra que 821 homens e 16 mulheres ocuparam uma cadeira na Câmara de Niterói desde 1930 —11 mulheres foram eleitas diretamente, e outras 5 eram suplentes ocupando posto vago pelo titular.
Mota avalia que a força econômica da cidade reforça as barreiras impostas pelos homens à representação política feminina —Niterói é o município com o maior IDH do estado do Rio de Janeiro e o sétimo do país.
“Niterói tem uma centralidade política e econômica que faz com que os homens tenham interesse concreto em ocupar postos de poder. Em alguns municípios menores, as mulheres até invertem essa proporção de gênero. Naqueles em que há poderio econômico e maior possibilidade de o cargo interferir nisso, vai ter mais dificuldade de ter uma mulher”, disse Mota.
A deputada estadual Verônica Lima (PT) exerceu três mandatos na Câmara, sendo a mulher com mais tempo no Legislativo niteroiense. Primeira negra eleita na cidade, ela aponta também a força do voto territorializado como um possível fator adicional para a baixa representatividade das mulheres.
“Eu sempre tive votação muito espalhada. O modelo de disputa em que as candidaturas emergem de bairros e de territórios acaba não favorecendo um voto de opinião. E essa política local, por associação de moradores, por exemplo, acaba sendo dominada por homens aqui na cidade”, disse Lima.
Ela, porém, não esconde a dificuldade em explicar como a representação feminina se mantém tão baixa numa cidade cuja prefeitura é dominada há décadas por um grupo político de esquerda, o PDT.
“Não se pode nem dizer que não tem mulheres participando da política. As últimas gestões têm colocado mulheres até em postos chaves. Sociologicamente falando, é até difícil de explicar”, disse a deputada, que foi secretária municipal de Assistência Social e Direitos Humanos.
Outro aspecto indicado por Mota é a violência política de gênero, que afasta mulheres da disputa ou dificulta candidatas de se elegerem. Segundo ela, as três primeiras a ocuparem o cargo sofreram ataques do tipo, “mesmo quando essa nomenclatura não era utilizada”.
Em seu primeiro mandato, Briolly já relatou uma sequência de casos de violência de gênero. Chegou a sair do país por 20 dias após uma série de ameaças. É também a vítima na primeira ação penal proposta pelo crime, tipificado em 2021 na legislação eleitoral, cujo réu é o deputado estadual Rodrigo Amorim (PRD).
Na Câmara, ela já sofreu seguidos ataques do vereador Douglas Gomes (PL). Um deles gerou ao vereador uma condenação por transfobia, com pena de um ano e sete meses de prisão. Ele não quis falar com a reportagem e, em suas redes sociais, disse ser vítima do “ativismo judicial”.
“A naturalização da violência contra a mulher é cotidiana na política. Então, a Câmara de Niterói só é mais um exemplo do que significa a velha política nos moldes do Brasil: patriarcal, colonizador, escravocrata, misógino e sexista”, disse Briolly.
“Existe um peso porque eu sou filha de porteiro com cabeleireira e venho da pobreza. Já é um preconceito muito grande. Um outro peso porque eu sou negra e retinta. Outro é ser uma mulher. E depois, de ser uma mulher transexual. Um combo de opressões que quando chega no meu corpo é um enfrentamento de diversas coisas. Às vezes, eu fico até meio que tentando entender: ‘Será que é racismo? Que é transfobia? Que é machismo?'”
Verônica Lima também foi alvo de um ataque machista e homofóbico. No plenário em 2021, ela relatou a abordagem do vereador Paulo Eduardo Gomes (PSOL) durante uma reunião de líderes.
“Ele começou a gritar, levantou, botou o dedo em riste [e disse]: ‘Você quer ser homem? Então vou te tratar igual homem’. E veio, se projetando na minha direção. Não foi só machismo, mas também homofobia. Eu não quero ser homem. Eu amo ser mulher. Sou uma mulher lésbica. Todo mundo sabe disso”, disse ela, na ocasião.
Gomes pediu desculpas no plenário no mesmo dia, quando classificou seu comportamento como “imperdoável” e sem justificativa. Ele foi afastado por dois meses do mandato por decisão do PSOL e passou por cursos sobre machismo e homofobia promovidos pelo partido. Ainda responde na Justiça a uma ação penal sob acusação de homofobia.
Lima criticou a punição dada ao vereador e afirmou que não o perdoa. “Para um partido de esquerda com as bandeiras do PSOL, é uma vergonha. Ele tinha que ser expulso.”
Em seu quinto mandato, Gomes atualmente é membro da Comissão de Direitos Humanos, da Mulher, da Criança e do Adolescente, presidida por Briolly há seis meses. Para ele, a baixa representação feminina na Câmara é “decorrência de um processo natural de representação política”.
“Eu acho que falta. Agora, a população é que tem que eleger uma mulher. Nós fazemos o nosso papel: colocamos representantes dentro da cota legal e defendemos ações afirmativas de direito da mulher”, disse ele.
Fonte: Folha de São Paulo