Laélia de Alcântara (PMDB) assumiu o mandato em abril de 1981; morreu em 2005 aos 82 anos.
Há pouco mais de 40 anos, o Brasil teve uma mulher negra no Senado pela 1ª vez. O pioneirismo coube a Laélia de Alcântara (PMDB-AC), que assumiu o mandato de senadora em 3 de abril de 1981, no período final da ditadura militar (1964-1985).
Quando tomou posse, Laélia tinha 57 anos de idade e nunca havia ocupado um cargo político. Nascida em Salvador, ela era médica obstetra e vivia em Rio Branco. Morreu em 2005, aos 82 anos.
Com a chegada da nova parlamentar, o país passou a ter 2 senadoras. O Senado já contava com Eunice Michiles (PDS-AM), branca, que havia quebrado a exclusividade masculina na instituição fazia apenas 2 anos.
De acordo com documentos da época guardados hoje no Arquivo do Senado, em Brasília, coube a Eunice dar as boas-vindas à colega: “registro com uma ponta de orgulho que novamente coube à Amazônia o privilégio de trazer para esta Casa mais uma representante do sexo feminino, fato que corresponde ao despertar da mulher em todo o mundo para um papel mais ativo na sociedade”.
Laélia, então, fez seu 1º discurso: “agradeço as demonstrações de apreço e carinho. Sou, como Sua Excelência, representante de uma região eminentemente problemática. Espero aqui trazer uma pequena contribuição e apresentar alguns dos problemas que o povo do Acre vive sofrendo há bastante tempo. No Estado, o pauperismo [pobreza] é grande, há carência de quase tudo. Notadamente os problemas ligados à saúde e à instrução pública constituirão objeto de minha especial atenção nesta Casa”.
Os jornais noticiaram aquela sessão em detalhes. A Folha de S.Paulo observou que Laélia usava “um vestido de jérsei de seda rosa, sapatos pretos e óculos presos por uma corrente ao pescoço”. Segundo o Jornal do Brasil, ela estava “quase sem pintura e com expressão de simplicidade”, sentada ao lado da “elegante senadora Eunice Michiles”.
As reportagens informaram que Laélia levou à posse o marido e 6 dos 7 filhos. Os 2 netos não foram. O senador Paulo Brossard (PMDB-RS), em viagem a Nova York, pediu que em seu nome entregassem flores à nova colega.
A Câmara tinha 4 deputadas, das quais 3 assistiram à cerimônia no Senado.
A revista Manchete descreveu Laélia como “a 1ª senadora negra do Brasil”. O Jornal do Brasil, como “mulata”.
Da tribuna, o senador Pedro Simon (PMDB-RS) fez um resumo da vida da senadora: “há 31 anos formada médica no Rio de Janeiro, abandonou o conforto da metrópole e foi para o Acre para exercer sua profissão e depois aceitou participar da vida pública para ser a 1ª senadora de cor”.
A princesa Isabel não entra na lista das mulheres no Senado porque, no caso dela, “senadora” foi um título concedido pela Constituição em razão do sangue imperial. A herdeira do trono nunca atuou como parlamentar.
Laélia de Alcântara se elegeu em 1974 como suplente, na chapa encabeçada pelo senador Adalberto Sena (PMDB-AC). Foi também como suplente que Eunice Michiles chegou ao Senado.
A senadora negra assumiu o mandato duas vezes. Primeiro interinamente, por 4 meses em 1981, quando Sena ficou afastado para tratar da saúde. Depois em definitivo, em janeiro de 1982, com a morte do titular. O mandato se encerrou em janeiro de 1983.
Ao longo do mandato, em discursos dentro e fora do Senado, ela denunciou o preconceito racial que permeava a sociedade brasileira.
Em um evento na Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul, em Porto Alegre, discursou: “a apreciação feroz do antropólogo Sílvio Coelho segundo a qual ‘a atribuição dos subempregos ao contingente de cor foi incentivada por uma sociedade interessada em manter à sua disposição um celeiro de domésticas e lavadores de automóveis’ ainda é repetida com visos de verdade. Urge fazer que ela não espelhe mais essa triste realidade. Os negros têm tudo para furar a barreira da penúria e da estagnação. Já é tempo de não mais ‘se situarem nos pontos mais críticos dos gráficos, nos índices mais medíocres das estatísticas, nos parágrafos mais soturnos dos relatórios e nos segmentos mais inferiores das pirâmides’”.
A senadora questionou a versão de que a escravidão no Brasil foi suave e os escravizados aceitaram passivamente os grilhões: “a massa de negros em nossa terra não permaneceu de braços cruzados diante da escravidão. Ela reagiu por todos os modos e como pôde. Protestou por meio de quilombos, fugas, rebeliões e até crimes cometidos contra senhores e feitores. Foi sempre altivo e continua a sê-lo. É um erro histórico dar à escravidão brasileira o aspecto de falsa suavidade. O negro é um insubmisso diante de toda forma de arbítrio e opressão”.
No mesmo evento em Porto Alegre, disse que o racismo contemporâneo era um prolongamento da escravidão. Segundo ela, assim como no passado, os negros brasileiros ainda se sentiam “exilados em seu próprio país” e a solução incluía oferecer-lhes “oportunidades iguais” às dos brancos.
Na sede da Confederação do Comércio, em Brasília, ela discursou sobre a Lei Áurea: “livre do cativeiro, como fazer para sobreviver? Sem instrução, sem outra capacitação e habilitação que não fosse o tamanho da terra e o mourejar nos engenhos, o transportar nas liteiras o seu amo e senhor e as sinhazinhas em visitas aos seus nobres vizinhos, que fazer? Servir, servir, servir. Viu-se o negro escravo do senhor mesmo após a discutida bênção generosa da princesa Isabel”.
Em 13 de maio de 1981, aniversário da Lei Áurea, Laélia insistiu no tema. No Senado, ela leu para os colegas uma reportagem sobre uma jovem de 19 anos que foi expulsa de uma boate em Curitiba por ser negra e afirmou: “neste dia em que comemoramos a abolição da escravatura, ainda vemos que há espíritos escravos de preconceitos que não deixam uma estudante universitária, porque de cor, dançar na pista de uma boate”.
Reagindo ao discurso de Laélia, o senador José Fragelli (PP-MS) garantiu que o Brasil não era racista e deu a entender que o fato em Curitiba não passava de um caso isolado: “além de uma grande democracia política, o Brasil é um exemplo para o mundo de uma democracia racial, porque aqui não temos preconceitos de qualquer espécie, de cor, de raça, principalmente aquelas três raças que formam originalmente a pátria brasileira e todas as mais que para aqui vieram trazer sua contribuição à grandeza do nosso país”.
O senador José Richa (PMDB-PR) também pediu a palavra e disse: “não precisaríamos sequer ter uma lei como temos, a Lei Afonso Arinos [a 1ª lei antirracismo do país]. A própria coletividade brasileira, a própria nação, por si só, não tolera gestos de discriminação racial como esse acontecido lá em Curitiba”.
Outros senadores entraram no debate e afirmaram que o racismo era, sim, um mal disseminado no Brasil. Itamar Franco (PMDB-MG) discursou: “a sociedade brasileira só será justa, equânime e aberta quando todos os segmentos do país, sobretudo os negros, fizerem parte do desenvolvimento do Brasil”.
O senador gaúcho Pedro Simon foi ainda mais longe e recorreu ao exemplo da própria Laélia: “neste 13 de maio, devemos lutar para que não seja um fato raro uma mulher de cor integrar o Senado, a Câmara ou os quadros da vida política ou institucional deste país. Pelo contrário, devemos nos esforçar no sentido de que possam os negros se integrar definitivamente à vida da nação e, como Vossa Excelência salientou na palestra proferida no Rio Grande do Sul, deixar de oferecer os maiores percentuais de delinquência, miséria, fome, desemprego, subemprego”.
A historiadora Iracélli da Cruz Alves interpreta que a senadora adotou em Brasília uma postura de “silenciamento” sobre a sua raça, mas nunca de “negação”: “pelos discursos, vê-se que estava bastante atenta às demandas do movimento negro e dialogava com ele. Ela, por exemplo, denunciou que o processo de pós-abolição no Brasil foi incompleto. Laélia se posicionou, sim”.
Fazendo jus ao título de 2ª senadora do Brasil, Laélia de Alcântara redigiu propostas legislativas que beneficiavam as mulheres. Ela apresentou 2 emendas a um projeto de lei que liberava a entrada delas na Aeronáutica, um deles autorizando-as a pilotar aviões e o outro permitindo que recebessem patentes iguais às dos homens.
Em uma dessas emendas, para comprovar o quanto a sociedade ainda era machista, ela lembrou que, quando fez o juramento de posse no Senado, foi obrigada a obedecer a fórmula tradicional e declarar-se “senador”, no masculino.
A senadora do Acre também escreveu uma proposta que estabelecia que o comando da família caberia em conjunto ao marido e à mulher, e não mais apenas ele, a quem legalmente cabia dar a última palavra. A mesma proposta permitia que, com o casamento, o homem também adotasse o sobrenome da mulher.
Pela justificativa que Laélia anexou ao projeto, vê-se que ela tinha interlocução com o movimento feminista. A senadora escreveu que, para elaborá-lo, baseou-se num anteprojeto levado a Congresso Nacional pela Frente de Mulheres Feministas, que tinha a atriz e produtora cultural Ruth Escobar como a porta-voz mais conhecida.
Em 8 de março de 1982, no Dia Internacional da Mulher, Laélia discursou no Senado: “a necessidade de se estabelecer uma igualdade efetiva entre o homem e a mulher só se manifestará quando ambos tiverem, de fato, direitos iguais, e isso só se conseguirá com a supressão da discriminação salarial, da discriminação educacional e de tantas outras que estão impedindo a tão necessária incorporação da mulher na produção econômica, nas artes, nas ciências, na política”.
Eunice a apoiou e acrescentou: “senadora Laélia de Alcântara, de vez em quando me questionam se sou feminista, e eu devolvo a pergunta: ‘o que é ser feminista?’. Se ser feminista é defender, como Vossa Excelência o faz neste momento, a igualdade da mulher, a abertura de um maior espaço para que ela possa colaborar, então eu sou feminista, então somos feministas. Agora, se ser feminista é abrigar a disputa com o homem, é entrar no slogan ‘abaixo o homem’, então não sou feminista e por certo Vossa Excelência também não o é”.
Laélia respondeu: “suas brilhantes palavras traduzem fielmente o meu pensamento. Eu me sinto feminista nesta luta pela igualdade”.
O senador Aderbal Jurema (PDS-PE) aprovou o comportamento das colegas: “as senadoras assinalaram com a lucidez e a inteligência de que são dotadas a passagem do Dia Internacional da Mulher, sem os exageros feministas, equilibradas e sãs, companheiras de trabalho nesta Casa, companheiras de ideais aqui e alhures”.
Laélia prosseguiu com seu discurso: “a valorização da mulher não pode ser confundida com a simples aspiração de grupos feministas, se bem que, a partir das questões sentidas particularmente pelas mulheres, muitas delas cheguem a desenvolver sua participação contra as discriminações de maneira até excessivamente ativa. Mas inegável tem sido a contribuição que vêm prestando em todo o mundo na renovação do processo social e político”.
Apesar da argumentação, Laélia não conseguiu convencer os senadores a aprovar nenhum de seus projetos em benefício das mulheres.
Integrante do PMDB, o principal partido de oposição ao governo militar, Laélia de Alcântara foi ativa no Senado na defesa da redemocratização. Na visão dela, o governo do general João Figueiredo parecia pouco empenhado em acabar com a ditadura e devolver o poder aos civis.
Relatórios secretos da Polícia Federal que mantinham a ditadura informada a respeito de seus adversários mostram que Laélia participou em maio de 1981, ao lado de líderes do PMDB, como Ulysses Guimarães e Teotônio Vilela, de um debate público em Belo Horizonte a favor da redemocratização e da convocação de uma Assembleia Nacional Constituinte.
No Senado, ela criticou os colegas governistas pela tentativa de barrar um projeto de lei do PMDB que liberava as coligações partidárias: “não vejo razão para que os senhores senadores da situação tenham tanto medo de votar num projeto que fala por si só numa democracia, mas numa democracia verdadeira, em que o povo terá sua vez de falar, e não numa democracia forjada. Esse projeto não vai diminuir em nada os desejos do governo, se este realmente tem o desejo de abertura total, e não dessa abertura que até agora só vejo como uma fresta em uma porta. Abertura total seria partir realmente para ua verdadeira democracia”.
Os documentos do Arquivo do Senado também guardam discursos em que Laélia de Alcântara pediu ao governo que combatesse a fome, coibisse o trabalho infantil, concedesse direitos às pessoas com deficiência, preservasse o meio ambiente, demarcasse terras indígenas e oferecesse serviços gratuitos de saúde a toda a população (o Sistema Único de Saúde ainda não existia).
A senadora se candidatou à reeleição, mas não conseguiu renovar o mandato. Em 1987, assumiu no Acre a Secretaria de Estado de Saúde.
A historiadora Iracélli da Cruz Alves não se surpreende diante do fato de que a história da 1ª senadora negra do Brasil é praticamente desconhecida inclusive entre pessoas que estudam a questão racial: “quase não existem pesquisas acadêmicas a respeito dela. Esse silêncio é um sintoma eloquente do racismo estrutural. O protagonismo dos negros na nossa história é apagado, como se eles não tivessem sido nem pudessem ser agentes históricos. A própria Laélia fez essa constatação em um discurso sobre a escravidão. A trajetória da senadora mostra que os negros conseguem, sim, ocupar os diferentes espaços da cena nacional e influenciar o curso da história. Mesmo que não seja pela porta da frente, eles entram e ocupam os espaços, como fez Laélia, que chegou ao Senado como suplente”.
A historiadora avalia que o vazio de pesquisas sobre personagens negros na história do Brasil vem diminuindo nos últimos tempos e acredita que novos estudos virão nos próximos anos, principalmente graças à Lei de Cotas (Lei 12.711, de 2012), que ampliou a presença de estudantes negros nas universidades federais.
Apesar de a senadora não ter conseguido aprovar nenhum de seus projetos de lei, Cruz Alves avalia que a passagem dela pelo Senado teve resultados positivos para a população negra em termos práticos e simbólicos. “Primeiro, por provocar debates parlamentares sobre raça e racismo. Sendo Laélia negra, senadores a interrogaram sobre esse tema e ela se posicionou. Depois, por causa da representatividade. Esses homens brancos viram que aquele espaço não era só seu. As mulheres negras e os homens negros viram que também poderiam estar lá. É claro que, sozinhos, o debate e a representatividade não derrubam estruturas nem acabam com o racismo, mas são elementos importantes para a mudança”, afirmou.
Terminado o mandato de Laélia de Alcântara, em 1983, as mulheres negras precisaram esperar mais de uma década para se verem novamente representadas no Senado. Em 1995, tomaram posse as senadoras Benedita da Silva (PT-RJ) e Marina Silva (PT-AC). Elas chegaram ao Senado como titulares, e não como suplentes.
Quanto aos homens negros no Senado, é difícil indicar o precursor. Apesar de desde os tempos do Império haver senadores negros, eles não se identificavam publicamente como tais. O primeiro a fazê-lo foi Abdias Nascimento (PDT-RJ), líder histórico do movimento negro. Eleito suplente, ele assumiu o assento no Senado nos anos 1990 em 2 momentos (1991-1992 e 1997-1999). Abdias fez uma pesquisa histórica e concluiu que, antes dele, o Brasil teve 22 senadores negros.
Fonte: Poder 360