Dez anos após a promulgação da PEC (proposta de emenda à Constituição) das Domésticas, a informalidade ainda domina o mercado de trabalho no setor. De cada 4 trabalhadores dedicados a afazeres domésticos no Brasil, 3 atuam sem carteira assinada.
É o que apontam dados da Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) Contínua, do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística).
A emenda constitucional 72, que ficou conhecida como a PEC das Domésticas, foi promulgada no dia 2 de abril de 2013, no governo Dilma Rousseff (PT).
O objetivo foi assegurar direitos trabalhistas para profissionais do setor, aproximando-o de outras profissões. Em 2015, a lei passou por uma regulamentação que ampliou as garantias previstas para a categoria.
O problema, dizem analistas, é que de lá para cá o Brasil mergulhou em um período de baixo desempenho econômico, marcado por duas grandes crises: a recessão encerrada em 2016 e a pandemia de coronavírus a partir de 2020.
O contexto de dificuldades travou o avanço da formalização e da renda em diferentes segmentos. As domésticas não ficaram imunes a esse contexto.
“A conjuntura macroeconômica acabou se sobrepondo aos efeitos da PEC”, afirma o economista Bruno Imaizumi, da LCA Consultores.
De acordo com a Pnad, o Brasil tinha quase 5,9 milhões de trabalhadores domésticos no trimestre encerrado em janeiro de 2023. O número ficou em torno de 2% abaixo de igual período de 2013 (6 milhões), antes da PEC.
A parcela na informalidade aumentou. Até janeiro deste ano, 4,4 milhões atuavam sem carteira assinada, o equivalente a 74,8% do total ou a 3 de cada 4. No início de 2013, o grupo sem o registro era composto por 4,1 milhões (68,4% do total).
A parcela com carteira, por outro lado, encolheu na comparação da década. No trimestre até janeiro de 2023, o contingente de formais foi de quase 1,5 milhão (25,2% do total). No início de 2013, era de 1,9 milhão (31,6% do total).
“As duas crises dessa década provocaram perda de renda para as classes média e alta, que são aquelas que contratam trabalhadores domésticos”, frisa Imaizumi.
Para a economista Juliana Inhasz, professora do Insper, os dados mostram que o efeito desejado com a PEC não foi alcançado.
“O que vemos é uma classe que permanece na informalidade. A PEC não conseguiu impactar a formalização”, aponta.
Historicamente, os trabalhadores domésticos têm remuneração inferior a outros grupos pesquisados pelo IBGE e contam com uma participação maior das mulheres.
A renda média da categoria foi estimada em R$ 1.087 no trimestre até janeiro de 2023. O valor corresponde a um avanço real (descontada a inflação) de 6%, ou R$ 62, ante igual período de 2013 (R$ 1.025).
Na visão de Inhasz, o ganho foi “pequeno”. “É uma classe que sente a qualificação mais baixa. São pessoas que acabam tendo menor poder de negociação salarial”, avalia a professora.
Considerando apenas os trabalhadores domésticos sem carteira assinada, a renda ainda continua abaixo de R$ 1.000.
O rendimento médio dessa camada, que é majoritária, foi de R$ 944 no trimestre até janeiro deste ano, 10,4% acima de dez anos antes (R$ 855).
Entre os trabalhadores domésticos com carteira, a alta foi de 8,4%. A renda média alcançou R$ 1.511 no trimestre até janeiro de 2023, ante R$ 1.394 de dez anos atrás.
CRISE E PANDEMIA DIFICULTAM COTIDIANO DO TRABALHADOR DOMÉSTICO
O economista Marcelo Neri, diretor do centro de estudos FGV Social, destaca que as crises prejudicaram a vida das domésticas após a aprovação da lei e também dificultaram um mapeamento dos reflexos diretos da medida.
“Foi uma década perdida no mercado de trabalho. As empregadas domésticas não estão sozinhas nessa estagnação”, afirma.
Neri ressalta que a pandemia empurrou trabalhadoras para a informalidade, já que a crise reduziu a renda das famílias contratantes e causou restrições à mobilidade. É como se a empregada mensalista virasse diarista.
Além disso, enquanto a PEC buscou assegurar direitos para as domésticas, a reforma trabalhista de 2017 tentou gerar flexibilidade nas contratações, diz Neri.
“Não se sabe como seria sem a PEC, mas houve um aumento na informalidade.”
Apesar da alta informalidade, para a professora da UFF (Universidade Federal Fluminense) Hildete de Araújo, referência em estudos sobre o papel das mulheres no mercado de trabalho, a PEC e a regulamentação de 2015 foram importantes, por darem dignidade à categoria.
“A profissão é um legado do período da escravidão, e o cuidado com as pessoas sempre foi uma responsabilidade que recaiu sobre as mulheres, isso contribuiu para que elas levassem tanto tempo para ter direitos mais próximos dos demais trabalhadores.”
“Fazer uma avaliação precisa da efetividade da lei acaba sendo mais difícil, mas o saldo é positivo em relação às conquistas de direitos trabalhistas. Desde 2015, o setor se segmentou e muitos trabalhadores viraram diaristas. Também é preciso avançar na fiscalização”, diz Nathalie Rosário, do Sindoméstica-SP.
Segundo levantamento do economista Bruno Imaizumi, da LCA, a partir de microdados da Pnad, somente 36,2% dos trabalhadores domésticos contribuíam para a Previdência no quarto trimestre de 2022.
O percentual era maior, de 38%, em igual período de 2012, antes da PEC.
A parcela que não contribuía para a Previdência foi estimada em 63,8% no quarto trimestre de 2022. A proporção era menor, de 62%, no mesmo intervalo de 2012.
Mário Avelino, presidente do Instituto Doméstica Legal, acrescenta que, embora a crise de 2015 e 2016 e a pandemia prejudiquem a análise plena dos efeitos da PEC sobre o mercado de trabalho, o saldo é indiscutivelmente positivo.
“Antes, o patrão e o trabalhador estavam sem proteção. Agora, precisamos avançar em projetos que estimulam a formalização, como o que permite deduzir o INSS do empregado do Imposto de Renda do empregador.”
O levantamento de Imaizumi também aponta que a participação feminina até encolheu, mas continuou como majoritária no setor. As mulheres responderam por 91,5% do total de trabalhadores domésticos no quarto trimestre do ano passado a fatia era de 92,9% dez anos antes.
“Não podemos perder de vista que essa categoria ainda é formada principalmente por mulheres pretas e pardas, vindas do interior e das periferias, que não tiveram muitas oportunidades ao longo da vida”, diz Maria Izabel Monteiro, presidente do sindicato da categoria no município do Rio de Janeiro.
“Toda mudança na economia causa espanto e com a PEC não foi diferente, mas ela nos trouxe dignidade. O que precisamos agora é melhorar a fiscalização, para que os nossos direitos sejam garantidos”, diz ela.