Auditora do trabalho vê necessidade de maior fiscalização de atividades historicamente ligadas ao gênero feminino, como trabalhos domésticos, de cuidado e no mercado do sexo.
Foto: Marcos Serra Lima/ G1
Nascidas no Norte ou no Nordeste, pretas ou pardas, analfabetas ou com o ensino básico incompleto. Esse é o perfil da maioria das 2.488 mulheres resgatadas do trabalho análogo à escravidão durante os últimos 20 anos no país.
Os dados são inéditos e foram compilados a pedido do g1 pela Divisão de Fiscalização para Erradicação do Trabalho Escravo (Detrae), órgão que integra o Ministério do Trabalho e Previdência (MTP).
Mulheres corresponderam a apenas 5% do total de pessoas resgatadas em duas décadas. Segundo a auditora-fiscal do trabalho Jamile Virginio, que integra o Detrae, essa diferença se dá, em parte, porque a atuação do Detrae sobre atividades historicamente ligadas ao gênero feminino é recente.
“Foi somente em 2017 e 2019 que ocorreram os primeiros resgates no trabalho doméstico e no mercado do sexo“.
Veja abaixo os principais dados do levantamento:
De onde vieram e para onde foram
A região que concentrou o maior número de casos foi o Sudeste, enquanto a maior parte das vítimas era natural de estados do Norte ou do Nordeste. Os estados que concentraram mais de 80% dos resgates são:
- Pará (428)
- Minas Gerais (401)
- Bahia (278)
- São Paulo (271)
- Maranhão (238)
- Tocantins (166)
- Goiás (123)
- Rio de Janeiro (101)
Idade, raça e escolaridade
O Detrae também compilou dados sobre as atividades desenvolvidas pelas resgatadas e as funções desempenhadas na zona rural são as que mais concentram casos. Mais de 70% dos casos são relacionados às seguintes ocupações:
- Agropecuária (1.234)
- Cultivo de café (175)
- Cultivo de cana-de-açúcar (138)
- Pecuária de corte (118)
- Cultivo de árvores frutíferas (18)
- Cultivo de erva-mate (15)
Jamile conta que a diferença numérica nos resgates de homens e mulheres é tema frequentemente discutido entre inspetores do trabalho. Ela aponta que papeis sociais tradicionalmente ligados a homens e mulheres podem ajudar a entender o cenário.
“A dinâmica da sociedade brasileira é essencialmente de cunho patriarcal, que enxerga o homem como provedor familiar e cobra para que busque alternativas de renda e emprego”, diz a fiscal.
Para ela, essa dinâmica torna comuns os processos migratórios em busca de trabalho. “A condição de migrante é causa de vulnerabilidade frequentemente associada à exploração em condições análogas à escravidão.”
“Enquanto os homens saem dos municípios de origem atrás de promessas de ganhos melhores, as mulheres permanecem nestes mesmos municípios para a manutenção dos cuidados domésticos e familiares.”
A auditora ressalta outro ponto como explicação para os números. “O trabalho doméstico não remunerado e os cuidados com os familiares recaem de forma desproporcional sobre as mulheres, limitando seu potencial econômico.”
Outro fator citado por ela é geográfico. “O foco, durante muitos anos, foi em atividades realizadas na zona rural, atividades preponderantemente masculinas”.
As violações começaram a ser identificadas no ambiente urbano só a partir de 2022, em áreas como construção civil e confecção de roupas.
Mesmo diante desse contexto, a fiscal do trabalho aponta que são necessárias medidas para aumentar o número de resgates de mulheres. “O primeiro passo é reconhecer que as atividades frequentemente desempenhadas por elas necessitam de um olhar mais atento de nossa parte.”
Como os dados foram obtidos
As políticas públicas de combate ao trabalho escravo se iniciaram em 1995, mas só a partir de 2003 é que informações sobre o perfil das vítimas começaram a ser coletadas.
A mudança se deu após a criação do Seguro-Desemprego Trabalhador Resgatado, estabelecido em 2002 para amparar vítimas de regimes forçados ou em condições análogas à de escravo.
Para receber o benefício, as trabalhadoras forneceram informações pessoais e, desta maneira, os dados passaram a ser compilados pelo Ministério do Trabalho e Emprego (MTE).