Os povos indígenas têm uma relação com a terra muito diferente dos brancos. Para eles, principalmente as mulheres, a terra é parte essencial do cotidiano e da vida. Não é exagero dizer que ela é como uma parte do corpo. Uma invasão, portanto, provoca dores profundas e muito desespero. Tanto que o evento é considerado uma
“violência latifundiária”, termo cunhado pelo Mapa da Violência contra a Mulher Indígena, que tem como objetivo identificar atos contra os povos originários.
Para se ter ideia da vulnerabilidade em que vivem essas comunidades, este é apenas um dos 15 tipos de violações que as mulheres Kaiowá e Guarani sofrem. Quem está à frente do projeto é Jaqueline Kunã Aranduhá, coordenadora na Kuñangue Aty Guasu, Grande Assembleia de Mulheres Kaiowá e Guarani e uma das finalistas do Prêmio Inspiradoras 2022, na categoria Acesso à justiça.
Quem mais sofre com a falta de terras não demarcadas são as comunidades que dependem e cuidam da terra. E, de acordo com os nossos levantamentos mais recentes, quem exerce em grande maioria esse papel é a mulher.
Jaqueline Kunã Aranduhá, cientista social e líder indígena.
O Mapa foi realizado em parceria com o Fórum Internacional das Mulheres Indígenas (FIMI), com sede no Peru, UCL MAL (Laboratório de Antropologia de Londres) e o Instituto da Arte e da Cultura (IDAC). Além de identificar os tipos de violência, o trabalho tem como objetivo provocar a criação de soluções para repará-los e impedir que se repitam.
“Todo ano saem dados do índice de violência, mas o sistema do Estado sempre falha. Não há nada específico sobre as mulheres indígenas”, diz Jaqueline.
As primeiras fases do mapeamento aconteceram entre 2019 e 2020. Nelas, a equipe da Kuñangue Aty Guasu percorreu os nove territórios indígenas mais populares, coletando relatos das mulheres. “É um mapa construído pelas mulheres indígenas”, diz a antropóloga.
Em 2017, Jaqueline assumiu a coordenação coletiva da Kuñangue Aty Guasu, organização convocada pelas anciãs e rezadeiras há 16 anos. “Desde então, sentimos a necessidade de construir dados de violência que dêem visibilidade ao que acontece dentro dos territórios indígenas”, afirma.
Assim, para que os registros sejam mais empáticos, em vez de criar categorias preestabelecidas, que poderiam ser enviesadas, preferiu permitir que a própria comunidade se manifestasse. “A gente deixou que as mulheres falassem o que era violência para elas, porque o que se enquadra na categoria de violência no modo não-indígena para a gente é diferente”, diz.
Um dos exemplos é o que acontece com a violência obstétrica. Embora casos do tipo tenham ganhado evidência nos meios de comunicação recentemente, a importância que não-indígenas dá a eles, segundo Jaqueline, é menor do que a atenção empregada pelos povos originários. O tratamento dado à queima de casas de reza também é diferente. Segundo Jaqueline, enquadrá-los apenas como intolerância religiosa é subdimensionar o impacto do crime. Trata-se, afinal, de um ataque às práticas ancestrais, que vão muito além da fé.
O desafio de Jaqueline é tentar traduzir todas essas nuances. “Há juízes que acham que se trata apenas da queima de uma casa de palha, um conflito interno. É muito mais do que isso!”, diz.
Ela conta que práticas ancestrais, como o uso de ervas em rituais de reza, partos e outras curas são “demonizadas”. Assim, curandeiras, parteiras e líderes espirituais viram alvo de atrocidades. “Houve mulheres que quase foram queimadas vivas simplesmente por serem indígenas e viverem a própria cultura. Isso me deixou bastante chocada! Voltamos à época medieval em que as mulheres são queimadas como bruxas?”
Dos 15 tipos de violência, cinco são os mais relatados: ameaças pelo fato de serem mulheres e estarem lutando em defesa da sua comunidade; violência doméstica; estupro e assédio de meninas e mulheres jovens e idosas; negação do Estado em prover às vítimas de violência um atendimento adequado; e violência latifundiária, relacionada à questão territorial. “São pacotes de leis anti-indígenas feitos para destruir os direitos dos povos indígenas. Isso reflete muito no corpo e no cotidiano da mulher indígena”, diz Jaqueline.
A boa notícia é que o mapeamento já está surtindo efeitos. Os primeiros relatórios foram encaminhados às autoridades e está em discussão em Mato Grosso do Sul uma lei estadual para proteger casas tradicionais de reza, transformando-as em patrimônio cultural imaterial. Serão construídas, ainda, 12 novas casas de reza e as mulheres vítimas de intolerância religiosa serão incluídas no programa de proteção aos defensores de direitos humanos. “Elas são acompanhadas, monitoradas, para manter sua segurança”, fala Jaqueline.
O trabalho não para por aí. Em junho deste ano, a organização deu início ao terceiro módulo do mapeamento, agora também com o apoio da ONU Mulheres e do observatório da Grande Assembleia das Mulheres , Kaiowá e Guarani, a OKA. Dele, deve sair, em novembro deste ano, um documentário e um dossiê, um pouco mais didáticos sobre esses tipos de violência. O lançamento será na assembleia das mulheres Kaiowa e Guarani.
“Todo o Mato Grosso do Sul é território indígena. Isso tudo em territórios Guarani-Kaiowá. Ouço fazendeiros falando que estão aqui há 50 anos. O meu povo está aqui há mais de 500 anos.”
Fugir para lutar
Falar com Jaqueline Kunã Aranduhá é difícil. Ela está sempre em movimento, muitas vezes em reservas indígenas ou em áreas retomadas, onde o sinal de celular não pega bem. Quiçá a internet para uma conversa em vídeo. Para lá e para cá enquanto faz a cobertura antropológica de invasões e retomadas de terras indígenas em Mato Grosso do Sul.
Até os seis anos, Jaqueline morou na área agrícola de Dourados (MS), onde os pais trabalhavam nas fazendas. “Era o único lugar onde havia trabalho para os indígenas”, conta. Ela foi morar na Reserva Indígena de Dourados, onde estudou e completou o ensino médio. Entrou na faculdade e se formou em Ciências Sociais. Atualmente, está cursando o Mestrado em Antropologia pela Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD), com o tema Violência contra as Mulheres Indígenas Guarani e Kaiowá.
Desde 2016, quando fez a cobertura antropológica (registro de depoimentos dos envolvidos) da ocupação por fazendeiros de um território indígena que fica entre Dourados (MS) e Itaporã (MS), Jaqueline tem sido alvo de perseguições. “Comecei a juntar relatos de quem estava vivendo aquela situação e a divulgar para a mídia. O meu rosto, o meu nome, ficaram conhecidos e, por isso, passei a ser visada.” Segundo ela, todas as casas em que morou nos últimos anos foram invadidas em algum momento.
“A última foi em 2020, quando a gente estava fazendo a cobertura de imprensa em uma área de retomada sob ataque. Sete pessoas foram feridas, minha casa ficou cheirando a gasolina e foi totalmente saqueada. Isso porque eu nem estava presencialmente em território indígena.”
Para se proteger, ela vive pulando de residência em residência. “Estavam pagando para me matar, mesmo. Até tentei retornar para a reserva, mas não rolou. A questão é me manter viva para continuar lutando.”
Fonte: Universa Uol