Ser chamada de feia, incapaz, preguiçosa e incompetente pelo marido foi uma constante nos 16 anos de casamento da psicoterapeuta e escritora Adriana Caeiro, 44. “Era uma humilhação e uma manipulação diária, ele me diminuía para que eu sempre o obedecesse. Sabia o que era violência doméstica, mas tinha na cabeça a ideia da mulher com o olho roxo, o braço quebrado. Não entendia que o que vivia também era um tipo de agressão”, relembra.
Foi só depois do divórcio, há quatro anos, que ela começou a entender o que tinha acontecido. “Sofri abusos psicológicos, violência verbal. Me sentia um lixo, foi um abalo emocional de tirar meu chão. Percebi isso após participar de grupos de mulheres com experiências parecidas e ler mais sobre violência de gênero. Mas, dentro do relacionamento, não conseguia enxergar o problema”, conta.
O que Adriana viveu tem nome, violência psicológica. Citada pela Maria da Penha, é o tipo de violência que faz mais vítimas no país, superando os casos de agressões físicas. No último ano, segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, foram 13 milhões, cerca de uma vítima a cada três segundos. É considerada crime desde julho, com pena de prisão de seis meses a dois anos. A lei cita como práticas criminosas ameaça, constrangimento, humilhação e ridicularização, entre outros.
“O número de vítimas em um ano é, de fato, bastante alarmante, mas talvez não reflita o real tamanho da tragédia, principalmente se considerarmos que nem sempre a mulher se percebe vítima de violência quando o abuso é emocional”, afirma a juíza Ana Luisa Schmidt Ramos, autora do livro “Dano psíquico como crime de lesão corporal na violência doméstica” (ed. Tirant Lo Blanch Brasil).
“As estratégias comumente utilizadas pelo agressor psicológico de submeter a mulher pelo medo, desqualificar sua imagem e bloquear-lhe as formas de sair da situação podem ser, muitas vezes, sutis. Mas mesmo que sejam óbvias —como nos casos de ameaça explícita, por exemplo— sabemos que quanto maior a violência, maior o comprometimento psíquico da vítima, o que dificulta ou mesmo a impede de se perceber em situação de violência”, explica a magistrada.
‘Vítimas têm a sensação de que estão andando em um caminhado minado’, diz promotora
Promotora de Justiça de Enfrentamento à Violência Doméstica de São Paulo, Fabiana Dal’Mas diz que, entre os casos que já acompanhou, percebe vários relatos similares por parte das vítimas. “Elas dizem constantemente, por exemplo, que têm a sensação de estar andando em um caminho minado, que pode explodir a qualquer momento”, afirma, referindo-se ao fato de serem criticadas a todo momento por seus parceiros.
O objetivo do agressor, explica, é manter a mulher sob seu controle. “Ele também isola a mulher de família e amigos, decide quem ela pode encontrar, que roupa vai usar. E a manipula também com xingamentos, principalmente chamando de gorda, de maneira pejorativa, feia e imprestável.”
Depressão, ansiedade e pânico: as marcas invisíveis da violência psicológica
De acordo com Ramos, as agressões psicológicas, ainda que não deixem marcas visíveis no corpo da vítima, podem causar graves lesões na saúde mental da mulher, o que levaria a enquadrá-la até mesmo como lesão corporal. “Os parâmetros utilizados à constatação do dano emocional são aqueles mesmos sintomas, de natureza psiquiátrica, relacionados ao transtorno de estresse pós-traumático”, afirma.
“É possível que a mulher desenvolva sintomas como flashbacks do que viveu, medo de situações que lembram o trauma, crises de pânico, hipervigilância, insônia. Tais sintomas podem estar associados à depressão e à ansiedade.”
Humilhações e xingamentos são sinal vermelho e podem chegar à agressão física
Ainda que seja comum haver casos de violência doméstica sem agressão física, apenas psicológica, a promotora Fabiana Dal’Mas explica que, em situações em que é cometido um ataque corporal contra a mulher, o mais provável é que a tensão tenha se iniciado com manipulação emocional, ofensas e humilhações.
“É comum, em casos de violência contra a mulher, que exista um ciclo de violência que se inicia com a violência psicológica, consistente em xingamentos, ameaças e depois, neste mesmo ciclo, a violência aumente, passando a ser física, com lesões corporais, podendo chegar até mesmo ao feminicídio”, diz.
“As vítimas, seus amigos e familiares, devem estar atentos a todas as formas de violência, inclusive às invisíveis. É comum a vítima acreditar que o agressor irá mudar sua conduta. Também é frequente que a vítima não consiga deixar a relação violenta, seja por razões econômicas, seja pelos filhos, por pressão familiar ou da religião. Por isso, nunca devemos julgar ou culpar a vítima, e sim tentar ajudá-la.”
Como procurar ajuda
Mulheres que passaram ou estejam passando por situação de violência doméstica, seja física, psicológica ou sexual, podem ligar para o número 180, a Central de Atendimento à Mulher. Funciona em todo o país e no exterior, 24 horas por dia. A ligação é gratuita. O serviço recebe denúncias, dá orientação de especialistas e faz encaminhamento para serviços de proteção e auxílio psicológico. O contato também pode ser feito pelo WhatsApp no número (61) 99656-5008.
Também é possível buscar ajuda nos CRAs (Centro de Referência de Assistência Social) ou CREAs (Centro de Referência Especializado de Assistência Social) da sua cidade. Outra opção é a Casa da Mulher Brasileira. Os lugares contam com equipe especializada para ouvir e atender as vítimas conforme sua necessidade.
Se a intenção for denunciar um episódio de violência, a orientação é procurar uma delegacia, de preferência da mulher, para registrar uma ocorrência.
Fonte: UOL