Feminismo indígena quer incluir o aborto nas discussões e confrontar ideia dos homens de aumentar população
O feminismo indígena deu as caras na Esplanada dos Ministérios, em Brasília, durante o Acampamento Terra Livre na semana passada, com plenários e debates. Há quem se surpreenda com a voz forte dessas nativas brasileiras, mas não deveria – esse sentimento é cada vez mais forte nas aldeias, queiram ou não caciques e pajés. Um dos maiores exemplos ocorreu em setembro de 2018, em Cacoal (RO), quando a terceira edição da Assembleia Anual da Agir (Associação das Guerreiras Indígenas de Rondônia) reuniu em acampamento 150 representantes de diversas etnias para discutir o empoderamento nas questões indígenas.
O evento ocorreu sob um verão amazônico que, assim como as discussões, só davatrégua de madrugada. Desde bem cedo fazia calor e, logo no segundo dia daassembleia, surgiu a principal polêmica do encontro. Uma convidada do Sesai (Secretaria Especial de Saúde Indígena) fazia sua palestra sobre a prevenção do câncer de mama, com as mulheres todas em pé e ensaiando o autoexame, quando Maria Leonice Tupari, coordenadora da Agir, pegou o microfone e fez a pergunta que mudaria o rumo de muitas que estavam ali: “Nós gostaríamos de saber o que vocês (da saúde indígena) têm feito em relação à questão do aborto entre nossas mulheres?”
EMPODERADAS NA FLORESTA
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MUITO CACIQUE, POUCA ÍNDIA
A questão surpreendeu não só a palestrante, mas também as demais indígenas presentes que não encontraram o tema no programa de atividades. A convidada, uma não-indígena com não mais de 30 anos, respondeu que não estava preparada para o assunto e que possíveis reivindicações nunca tinham chegado até ela, mas falou que “ao tirar uma vida, automaticamente estavam cometendo um pecado.”
O que entrava em discussão naquele momento não era se elas iriam se comportar como defensoras ou não do aborto, mas sim de terem o direito, como mulheres, de poderem tratar o tema. Leonice insistiu que buscava esse debate sob o espectro da saúde e não o da religião e que, por mais que o tema fosse pouco mencionado, o aborto acontecia, e elas, as índias, queriam saber mais a respeito. Todas consentiram com menear de cabeças, se entreolharam e o burburinho se fez presente.
“As mulheres da sociedade não-indígena já estão discutindo sobre a legalização do aborto, mas nós ainda nem começamos a falar sobre isso”, afirma Leonice. O entrave, muitas vezes, começa com os caciques, que não permitem menção ao tema mesmo que a abordagem venha de agentes de saúde. “Mas esse é um encontro de mulheres, e aqui nós vamos falar sobre isso”, completa Leonice.
As histórias que seguiram não foram sobre o desejo de se livrar da gravidez, mas sobre as condições contemporâneas que as levaram, e levam, a desistir de trazer novas vidas ao mundo.
O ABORTO E OS GRUPOS SOCIAIS
As indígenas estão entre as brasileiras com maior propensão a abortar, segundo a Pesquisa Nacional de Aborto, realizada pela Anis (Instituto de Bioética) em 2016. As mulheres com menor escolaridade e vivendo nas regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste também. Leonice e as demais presentes naquele encontro fazem parte desse perfil.
“Falar de aborto é polêmico e complexo, principalmente dentro dos povos indígenas. A gente não toca no assunto, mas sabemos que existe. E feito de qualquer forma, sem pensar no perigo que traz para a saúde da mulher. Não falamos sobre isso porque as mulheres são reprimidas. Hoje, você vê que a sociedade não-indígena e as igrejas impõem isso como um pecado, uma coisa de outro mundo, e colocam medo nelas. Mas, mesmo assim, isso é uma coisa que acontece. Só que elas não tem coragem de falar”, afirmaLeonice.
A culpa cristã embutida nos discursos pode ser explicada pelo fato de a saúde indígena em alguns casos ser terceirizada por ONGs com cunho religioso. A Missão Evangélica Caiuá, por exemplo, foi a responsável por esse trabalho durante muito tempo entre os indígenas do Dsei (Distrito Sanitário Especial Indígena) Vilhena, do qual a comunidade de Leonice faz farte. Ligada à Igreja Presbiteriana do Brasil e com o slogan “A serviço do índio para a glória de Deus”, abocanhou R$ 2 bilhões, entre 2010 e 2017, em convênios firmados com o Ministério da Saúde para administração de distritos de saúde indígena no Brasil. Em 2018, a Santa Casa de Sabará assumiu a prestação de serviços no Dsei Vilhena.
O Ministério da Saúde informou, por meio de nota, que o atendimento à população indígena é diferenciado, pelas características étnico-culturais e formas de organização e cuidados de saúde próprias dos povos indígenas. Quanto à saúde da indígena, o órgão afirma que tem políticas públicas voltadas à saúde reprodutiva, de modo a garantir acesso à informação, métodos contraceptivos e orientação para que possam tomar decisões sobre reprodução.
UM, DOIS, TRÊS INDIOZINHOS?
Segundo a técnica em enfermagem Clarice Canoé, não é mais consenso que a indígena deseja ter inúmeros filhos. E, para elas, o uso do preservativo ou de anticoncepcionais também não é tão óbvio como parece, afinal, em algumas comunidades ainda é necessário que os maridos aceitem. E muitos não concordam porque, segundo as mulheres ouvidas pelo TAB, eles querem mais filhos para aumentar a população indígena.
Nesses casos, algumas mulheres tomam escondido, seja o anticoncepcional em pílulas ou os injetáveis (mais comuns), mas sem o acompanhamento médico ideal devido à distância de algumas aldeias até os centros urbanos, o que pode levar à gravidez indesejada.
“As mulheres não querem ter mais tantos filhos por causa das dificuldades que envolvem a educação, a saúde e o bem-estar da família. E têm lideranças que não aceitam o uso da camisinha, nem de outros métodos e não permitem nem que os enfermeiros ou técnicos de saúde venham até nossas aldeias para palestras referentes a temas que achamos importantes. Então, para nós, fica complicado”, afirma Clarice, 32, que pela primeira vez participou de um encontro de mulheres indígenas.
MACHISMO NA RESERVA
Rosimere Cavalcante Barbosa, coordenadora estadual da Omir (Organização da Mulher Indígena de Roraima), percebe o machismo latente e a necessidade de liberdade de escolha da mulher. “Somos uma organização muito católica e não somos a favor do aborto, mas se tivesse um aborto legalizado seria mais fácil para a mulher, porque elas sofrem muito preconceito e humilhação, mesmo em caso de estupro”, afirma.
A Omir existe desde 1999, trabalha com 14 etnias do estado de Roraima e foi criada para defender os direitos e combater a discriminação e a violência contra as indígenas. “Orientamos a ter cuidado para não praticar o aborto de qualquer jeito. Quando acontece, o caso é abafado. Pensamos que é um pecado tirar uma vida, mas a Omir não vem discutir sobre religiões, mas sim sobre saúde”, afirma Rosimere.
De acordo com a educadora Cristine Takuá, da aldeia Rio Silveira, em Bertioga (SP), o machismo presente em todas as sociedades silencia a voz da mulher, e entre os indígenas não é diferente. “A gente percebe, quando tenta trazer esse assunto para as grandes reuniões, que não vai muito longe, não sei se por timidez ou se uma questão histórica. Estamos tentando hoje quebrar esse silêncio e expandir essa fala para além dos pequenos círculos de mulheres e sim para as grandes reuniões”, afirma.
DESDE O BRASIL COLÔNIA
O aborto já foi tratado como algo livre dos pecados, mas isso antes da chegada dos missionários às terras indígenas. No livro “Histórias do Cotidiano”, a historiadora Mary del Priore relata que nas primeiras cartas jesuíticas o aborto era tratado como um hábito corrente entre as indígenas. Elas, segundo os padres da Companhia de Jesus, apertavam suas barrigas, carregavam peso e preparavam beberagens capazes de fazê-las “mover”, contrariando leis do cânone.
Na pesquisa “O aborto inseguro é um problema de saúde pública”, descreve-se que, no Brasil, o aborto provocado tem sua prática descrita desde a época da colonização, quando as indígenas o praticavam, por exemplo, em caso de dissolução das famílias quando os índios fugiam das missões jesuítas. As práticas abortivas no Brasil colonial variavam desde chás até a introdução de objetos cortantes, práticas essas orientadas, na maioria das vezes, por parteiras e benzedeiras.
Não é possível tratar as indígenas e suas histórias, valores e convicções de uma só forma. Segundo Marta Azevedo, pesquisadora da Unicamp (Universidade de Campinas), cada povo tem um sistema de relações de gênero diferente. “Quando se fala em indígenas tem que tomar um certo cuidado. Se não, é como se a gente falasse das mulheres americanas e juntasse as norte-americanas, as mexicanas e as brasileiras como se fosse tudo a mesma coisa. Não é”, afirma Marta.
No entanto, segundo ela, nas localidades onde houve a presença e ação de missões religiosas, “toda essa parte do sexo, da saúde sexual, da saúde sexual reprodutiva e controle sobre o número dos filhos, as mulheres ficam tendo que esconder porque vem a moral cristã.”
A PRÁTICA E A TRISTEZA
Apesar do controle que por muito tempo a indígena teve sobre o próprio corpo, o aborto era e sempre será uma prática que traz tristeza. De acordo com Sofia Mendonça, coordenadora do Projeto Xingu, projeto de extensão universitária da Escola Paulista de Medicina da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo), não se trata de nutrir um desprezo pela vida.
“Não tem essa culpa cristã, essa carga que a gente coloca, mas traz muito sofrimento. É uma outra culpa, não é a mesma vergonha do que é para a nossa sociedade. Depende sempre da situação, do tipo de gravidez. É um sofrimento múltiplo, que tem a ver com as regras sociais daquele povo.”
Uma mulher que engravidou de um homem não-indígena. Uma gravidez de um homem que não era aquele a quem a família a tinha prometido desde o nascimento. Um filho gerado por um homem de um mesmo clã no qual o casamento não é permitido. Esses são apenas alguns exemplos de regras sociais violadas e que podem trazer para aquela família vergonha, para a mulher grávida, desprezo, e para o filho que nascerá, o isolamento.
CHÁS E ERVAS
Os relatos ouvidos pela reportagem apontam que o uso de chás e ervas abortivas ainda são utilizados pelas indígenas. Mas não só. Em aldeias e comunidades localizadas mais perto das cidades, há acesso fácil a medicamentos como o misoprostol.
“Somos de um município fronteiriço com a Bolívia e lá medicamentos abortivos são vendidos em farmácia. Então, o aborto acontece ou com remédios da floresta ou com os da cidade”, afirma Clarice.
A educadora Claudia Baré, moradora do Parque das Tribos, em Manaus (AM), conta que os casos de aborto na comunidade não são muitos, mas eles existem, e que o uso de ervas tradicionais para a prática é o método mais comum. Mesmo vivendo em uma capital, não é fácil falar sobre o assunto com as mulheres – ela credita à religião uma parte dessa dificuldade.
“Apesar de estar nesse contexto urbano, as mulheres ainda são bem fechadas quando o assunto é aborto. Mas a gente entende e não julga. Porque elas têm medo das pessoas ficarem comentando”, afirma.
Para Raial Puri, antropóloga do DSEI-ARJ (Distrito Sanitário Especial Indígena do Alto Rio Juruá), alguns povos conseguem se blindar do que ela chama de “mundo cristianizado”, o que é a realidade em muitas aldeias, mas para muitos o aborto é considerado um pecado, o que torna a questão mais complexa. “Isso causa problemas maiores que antes não existiam, além da questão social ainda vai entrar uma culpa cristã. Espero que vocês, mulheres brancas, tenham algum dia o nível de controle de liberdade que a mulher indígena teve em algum momento, mas que em muitos casos não é mais possível”, afirma.
Do encontro da Agir, um documento foi elaborado para que o assunto possa ser discutido nas próximas conferências de saúde. Entre as reivindicações, a realização nas aldeias de palestras e trabalhos com foco na violência contra a mulher, o uso de drogas e álcool e o aborto. “Visto que os temas estão sendo debatidos de maneira ampla em toda a sociedade, nós queremos discuti-los também”, afirma Puri.
Fonte: UOL