Os remédios naturais e chás fazem parte de todo o processo – da gravidez ao pós-parto
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Despertou no meio da noite, o gosto do chá ainda na boca. Sentiu uma dor – talvez uma cólica, talvez uma contração – “de amanhã essa criança não passa”. Com esforço, levantou o barrigão. Foi até a cozinha, tomou mais uma caneca do chá, do jeito que a avó falou para fazer antes de dormir. Esperou. O chá da avó sempre funciona pra mulher que está para ganhar neném. Fez meia volta para ir pro quarto, “não dá tempo”. A avó acordou com um choro de criança rompendo a noite. Nasceu!
Os ensinamentos sobre parto e gravidez que as meninas indígenas recebem começam desde cedo: na contracepção. É comum ouvir falar de anticoncepcionais naturais entre as indígenas e de um jeito bem mais equânime – tanto para a mulher quanto para o homem. Em uma roda de prosa só para mulheres na 10 a. Aldeia Multiétnica, evento que ocorre todos os anos na Vila de São Jorge, na Chapada dos Veadeiros, mulheres de várias etnias descreveram como é vivido todo o processo reprodutivo em sua cultura, incluindo o parto.
“Às vezes a mãe dá o remédio para a filha não ficar grávida sem deixar ela saber”, me conta em segredo uma das mulheres. Pergunto se a menina não fica brava quando descobre. “Até fica na hora, mas sabe que a mãe fez pro bem dela”, aponta. Quando engravidam, as mulheres passam por uma série de cuidados físicos e espirituais. Mas, em geral, elas vão trabalhar normalmente nos seus afazeres até a hora do parto.
CUIDADOS
É responsabilidade das mulheres mais velhas preparar as mais novas para a maternidadeentre as Kaingang. “Elas explicam coisas como a amamentação, o cuidado na gravidez, a dieta que terá que ser feita, a dor do parto”, conta Joziléia Daniza Jacodsen (Yakixo), antropóloga Kaingang da Terra Indígena de Serrinha – SC. “Eu acho interessante que isso é uma psicologia tradicional de conversa sobre o parto. Então as mulheres vão pro parto sem medo, bem preparadas”.
Os remédios naturais e chás fazem parte de todo o processo – da gravidez ao pós-parto – para as Kamayurá. A partir do quinto mês, elas passam a tomar um chá para aumentar o líquido aminiótico. É a mãe da grávida que prepara uma infusão de raiz de algodão que será ingerida logo antes do parto.
Na roda de prosa, Katuapó Kamayurá, filha e esposa de lideranças do Parque Indígena do Xingu, contou que ela mesma fez seus oito partos.
Mas a maioria das mulheres da sua etnia conta com parteiras.
Funciona assim: quando começa a cólica que avisa a chegada do bebê, a mulher “toma um remédio pra aumentar a dor e começa a preparar a rede e o cinto pro parto”. A parteira é chamada. Dependendo da situação, são convocados os rezadores também. Eles são capazes de arrumar a posição do bebê apenas com o poder da oração. No final, todos que ajudaram ganham colares de concha de caramujo como agradecimento pelo trabalho.
A reza é intrínseca à cultura dos povos indígenas e no parto não é diferente. As parteiras e os rezadores, pajés, curandeiros e líderes espirituais são ponto comum quando o assunto é parto.
Gisele Fontes (Umussy) é a terceira filha do Seu Raimundo, pajé do povo Dessana, que vive em uma área de preservação em Manaus. Ela tem duas filhas e as duas nasceram de parto normal, em casa, com o pai e a mãe de parteiros.
Na aldeia dos Dessana, a mulher fica de cócoras na hora de ter o bebê. Ela é segurada pelo marido ou por outro homem de confiança – que pode ser um irmão ou um cunhado.
“Não é todo homem que tem coragem ou força para segurar a mulher na hora do parto”, explica Gisele.
Segundo ela, “precisa ser força de homem” nessa hora porque a mulher está concentrando sua força em ter o bebê e precisa de alguém que a ajude a manter a posição sem cair.
– E ele vai ter que ficar ali, firme, aconteça o que acontecer – frisa ela.
– Então, eles têm o filho juntos mesmo? – pergunta a reportagem.
– Sim, juntos!
As Guarani contam algo parecido em relação ao parto. De cócoras, alguém as segura – geralmente um homem. Na aldeia do Amaral, próximo de Florianópolis – SC, Santa Moreira é a parteira mais conhecida. Sua irmã Sônia é erveira e raizeira. As duas são filhas dos anciões Seu Alcindo Moreira e Dona Rosa, de 107 e 104 anos respectivamente. Dona Rosa também era parteira e seu Alcindo é o líder espiritual da aldeia. Ele reza os partos difíceis.
Marcelina Moreira (Takua ywydju mirim), filha de Sonia, conta que teve um parto difícil e sentiu muita dor. Precisou de reza. “Tem que aguentar”, disse ela – frase típica dos Guarani e receita pronta para as dificuldades. No fim, deu tudo certo.
Homem não participa na hora do parto dos Tapayuna. Na aldeia da Terra Indígena Wawi, no Mato Grosso, há duas parteiras experientes, conta Daniela de Lima, que acompanhou três partos durante as pesquisas de mestrado e doutorado pela Universidade de Brasília (UnB).
As indígenas recebem acompanhamento pré-natal através do SUS. Se houver alguma gravidez de risco, a mulher será encaminhada para que o parto seja feito “na cidade”. Mas, em geral, elas têm os filhos na aldeia, com as parteiras, também na posição de cócoras. “As outras mulheres que acompanham serão responsáveis por segurar a parturiente”, explica.
O cordão umbilical é cortado com “cinzas e flecha” na aldeia Kamayurá, no Alto Xingu. Depois disso, a mulher vai tomar outro chá para o restante da placenta e sangue saírem. Continuará tomando apenas chá até “o umbigo da criança cair”. E nem pensar em comer carne de caça nos primeiros dias, sob o risco da criança ficar doente e chorosa.
Entre os Krahô, o pós-parto é uma fase de alerta e deve ser obedecida uma dieta especial. Raquel Rorkwyj Krahô conta que os pais e parentes “precisam fazer tudo certinho até cair o umbigo do neném”. Quando cai o cordão umbilical, a aldeia faz o paparuto – um bolo salgado de mandioca e carne, embalado em folhas de bananeira e assado em brasas na terra. A mulher então deve comer desse bolo junto com a comunidade. Depois disso, o homem pode voltar a caçar e a mulher pode voltar a comer carne vermelha.
O indicado pela medicina tradicional Guarani é que o casal que acaba de ter filho passe um ano sem ter relações sexuais. Uma das Guarani mais nova diz em tom de brincadeira: “Eu aguentei seis meses, até que estou bem”.
Joziléia aponta que, em anos recentes, as mulheres Kaingang vem tendo seus bebês no hospital. “São poucas as que têm em casa como era na época em que eu nasci”, pondera. Mas o parto tradicional Kaingang também é de cócoras.
Na visão de Daniela, as indígenas Tapayuna não dão tanta ênfase ao estar grávida e ao ato de parir. “Não que não seja importante – ter filhos é uma das partes mais importantes na vida de uma mulher – mas o ato em si não é um grande evento como a gente tem aqui”, explica.
O filho de Marcelina tem hoje quatro anos de idade e, apesar das dificuldades do parto, é uma criança saudável. Ele é alto em comparação às outras crianças Guarani.
– Sim, ele é diferente. Além disso, tem descendência Tupi também, por isso é maior – explica.
– Quer ter outro?
– Agora não. Tomei o remédio para não ter mais, pelo menos por enquanto. Agora só seÑanderu (o Grande Espírito, Deus) quiser.
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Fonte: AZMina