Aos 81 anos, a feminista americana publica um livro de memórias
Toda menina, garota ou mulher que hoje escolhe reagir diante de violência ou discriminação segue, mesmo sem saber, os passos da americana Gloria Steinem. Seu recém-publicado My life on the road– já best seller nos Estados Unidos e ainda sem data para chegar ao Brasil – está em produção há mais de uma década. Foi escrevendo o livro que Steinem se deu conta que, por boa parte da vida adulta, não passou um período maior que oito dias corridos em sua bonita casa no Upper East Side nova-iorquino, um local charmoso adornado por diferentes objetos trazidos de suas incursões pelo mundo e de um pequeno jardim aos fundos. No livro, ela atribui o conforto que sente ao estar sempre na estrada à primeira infância errática. Quando menina, ela viveu basicamente no banco de trás de um carro, enquanto o pai cruzava o país, entre Flórida, Michigan e Califórnia, investindo em esquemas de compra e venda de joias, levando a tiracolo as duas filhas e a esposa, mãe de Gloria, que sofria de depressão. Seu início de vida pouco convencional reverberou em uma entrada na vida adulta semelhante: logo depois de se formar na universidade, ela passou ainda dois anos na Índia com uma bolsa de estudos, por onde viajou conhecendo vilarejos e aprendeu sobre aorganização e mobilização popular local. “Como meu pai, eu habitava o futuro, a terra das possibilidades”, ela afirma, em seu novo livro.
Durante sua estada em terra indianas, Gloria também dispensou os carros com motorista – luxo frequente entre estrangeiros ocidentais – e optou por realizar suas viagens de trem, nos vagões de terceira classe exclusivos para mulheres. “Entre as paradas, elas me ofereciam seus próprios curries, arroz e pães caseiros, me ensinaram a amarrar um sári de mais formas que eu considerei possível e discutiam as variedades de mangas com toda a nuance reservada por ocidentais aos vinhos”, escreve a autora. “Décadas depois, essas mulheres ainda vivem em minha memória. Se eu estivesse isolada em meu carro, esses círculos de fala nunca teriam acontecido”.
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Gloria trabalhou como jornalista em Nova York nos anos 1960 e ganhou notoriedade no meio editorial ao se infiltrar como uma “coelhinha” no Clube Playboy da cidade, então um reduto de homens da classe alta. Num artigo, ela revelou a rotina de abusos e de exploração de jovens mulheres no local. Gloria conta no livro que, mais tarde, já cobrindo política para a New York Magazine, um dos berços do new journalism, ao dividir um taxi com o jornalista Gay Talese e o escritor Saul Bellow, ouviria do primeiro: “Sabe como todo ano tem uma garota bonita que vem a Nova York e finge ser escritora? Bom, Gloria é a garota bonita deste ano”. “Era essa a atitude, nós éramos ornamentos”, disse a autora em entrevista recente à apresentadora americana Katie Couric.
Nos anos 1970, envolveu-se com todas as grandes iniciativas domovimento feminista nos Estados Unidos. Foi uma fundadora da Ms. Magazine – primeira publicação americana assumidamente feminista, que cobriu assuntos tabus na época, como violência doméstica e aborto – e da Comissão Política Nacional das Mulheres (na sigla em inglês, NWPC), destinada a encorajar e formar mulheres para atuar como líderes políticas. Percorreu o país como organizadora de grupos locais de mulheres e participou de passeatas e atos políticos. “Começamos a ver nosso trabalho como um catalisador para que as plateias se tornassem um grande círculo de fala, descobrir que as pessoas ali não eram loucas nem estavam sozinhas em suas experiências com injustiça. Como na Índia, elas contavam suas próprias histórias”, conta Gloria.
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Nessa trajetória, incluiu outro forte ponto de contato com a nova onda feminista brasileira, que atenta para todas as formas de discriminação. Ela falou sempre sobre o papel das mulheres negras e do movimento por direitos civis dos negros nos Estados Unidos. “Em minha experiência, eram sempre as mulheres negras que estavam à frente. As mulheres com as quais eu aprendi feminismo e que se podia ser diferente, se rebelar, eram negras”, disse durante palestra do TED em 2011. A icônica imagem de Gloria ao lado da ativista negra e cofundadora da Ms., Dorothy Pitman-Hughes, lado a lado de punhos cerrados, publicada pela revista Esquire em 1971, se tornaria um dos símbolos da luta por igualdade – racial e de gênero. Hoje, octogenária, Gloria invoca com frequência ensinamentos indígenas, aprendidos com colegas de ativismo nativo-americanas.
A dureza dos problemas que ela enfrenta contrasta com seu semblante tranquilo e sua voz calma. Um de seus registros em vídeo mais célebres a mostra jovem, com calça de cintura alta, óculos grossos e cabelos longos, falando a uma multidão de mulheres, em tom baixo e com conteúdo explosivo: “Eu só gostaria de lembrar a todas aqui presentes que estamos falando de revolução, não de reforma”. Hoje, a revolucionária circula por ambientes ilustres e evoca respeito quase irrestrito. Recebeu a Medalha da Liberdade, mais alta honraria dada a um cidadão civil americano, conferida pelo presidente Barack Obama. Mas continua a usar sua fama para impulsionar causas, como o fim do tráfico sexual e da mutilação genital feminina. “Meu funeral será um evento de arrecadação de fundos”, já disse, irreverente, em uma de suas palestras. Nunca duvide de Gloria.
Fonte: Época