“Eu me submetia a relações sexuais contra a minha vontade, sem entender de fato que o que estava acontecendo era uma violação.” A frase é da atriz Julia Konrad, que há pouco mais de um mês revelou, em uma carta aberta publicada na revista “Cláudia”, que viveu um relacionamento abusivo no qual era constantemente estuprada por seu então companheiro. A violência que Julia sofreu é mais comum do que se imagina, mas permanece invisível.
É sabido que, na grande maioria das vezes, os estupros não se enquadram naquele imaginário do crime cometido por um estranho em um beco ou um matagal escuro. A verdade é que, entre os casos de estupro que chegam as autoridades policiais, 76% das vítimas possuem algum tipo de vínculo com seus agressores. Podem ser parentes, companheiros, amigos ou até conhecidos da família.
Uma parte dessa violência sexual nem chega ao sistema de Justiça, porque muitas vezes sequer é reconhecida como tal. O estupro marital, como é chamado por especialistas, é aquele cometido dentro da relação, seja ela qual for, muitas vezes sob a antiquada e equivocada visão de que a mulher tem algum tipo de débito conjugal e deve “satisfazer o marido”, mesmo que não queira, pois “esse é seu dever.”
A defensora Flávia Barbosa do Nascimento, coordenadora de Defesa dos Direitos da Mulher da Defensoria Pública do Rio de Janeiro, explica onde surge essa visão:
— Vivemos numa cultura patriarcal muito forte e numa tradição que reproduz a falsa ideia de que a relação sexual no matrimônio é um débito conjugal. O Código Civil de 1916, que ficou em vigor até 2002, era interpretado dessa forma. É uma herança do direito canônico da Europa Medieval. Mas isso não existe. O sexo não é um dever do casamento ou de qualquer relação — afirma a jurista.
A atriz Julia Konrad conta que, apesar de ser feminista e ter consciência das diversas expressões da violência de gênero, se sentia “em débito” com seu ex-companheiro:
— A gente vem de séculos de uma construção patriarcal onde mulheres são vistas como propriedade. Eu tinha na cabeça, como muitas mulheres e homens têm, que o dever da mulher era o de estar lá disposta a entregar seu corpo para seu marido, namorado ou parceiro, quando ele quisesse. Caso contrário ele ia procurar em outro canto — disse a atriz em entrevista à CELINA.
Em sua carta aberta, Julia descreve que já na primeira transa não se sentiu confortável com a violência e agressividade do então parceiro, mas não reagiu. No decorrer do relacionamento, as relações sexuais seguiram sendo violentas e, apesar de não querer transar e de não sentir tesão, se sentia coagida psicologicamente a fazê-lo. “O problema era meu, afinal, eu era frígida, teria algum bloqueio mal resolvido, insinuava ele”, escreveu a atriz, contando que acabou internalizando e acreditando nessa narrativa.
A psicóloga Kátia Rosa, líder nacional do projeto Justiceiras, que atende mulheres vítimas de violência doméstica, explica que o estupro é chamado “marital” porque tem relação com a figura do marido:
— Tem relação com a figura do homem que tem o poder sobre a mulher e se relaciona com a instituição do casamento, mesmo que ele não seja constituído. Assim que o homem assume a postura do marido, a mulher se sente propriedade. Ela não compreende que a atividade sexual é dela. É ensinada a dar prazer para ele. E se questiona ‘será que eu posso dizer não?’
A resposta é sim. Nenhuma mulher tem o dever de se submeter a uma relação sexual na qual não esteja completamente confortável, especialmente dentro de um relacionamento amoroso. Mas dizer não nem sempre é fácil, como conta Julia:
— Quando você está dentro de uma relação tóxica e abusiva, a manipulação é muito sutil e complexa. Por mais que você estude sobre e ache que está super educada sobre o tema, não esta imune. Eu me submetia a relações sexuais contra a minha vontade, sem entender de fato que o que estava acontecendo era uma violação — diz a atriz, que revela só ter percebido que tinha sido vítima de estupro e violência doméstica anos depois do fim do relacionamento, na terapia.
— E quando você tem afeto por uma pessoa, você vai ser cegada por isso, vai querer sempre acreditar que aquela pessoa está com as melhores intenções e não está fazendo aquilo que obviamente está fazendo. Por isso acho que a gente tem que se escutar muito mais, porque, no fundo, sabe quando não está confortável — completa.
— As mulheres aprendem com suas avós, mães e amigas que se não satisfizerem os maridos, eles vão arrumar outra. Aprendem que o prazer não é delas, é deles. Aprendem que não importa, porque passa rápido. Aprendem que o corpo delas é para ter filho, para trabalhar, para servir. As mulheres aprendem a servir e aprendem a ceder — afirma Kátia Rosa.
A psicóloga explica que muitas mulheres, quando se percebem nessa situação, ficam relutantes em questioná-la ou em romper o relacionamento. Mas a psicóloga ressalta que esse costuma ser um ato violento de recorrência, que não ocorre uma vez só e que tende a se agravar com o tempo.
— Geralmente começa com pequenos atos dentro da relação constituída. Aquele abuso, o companheiro pega ou passa a mão em qualquer lugar do corpo da mulher sem ela consentir. Aos poucos, começa a ocorrer uma naturalização do abuso, que se torna uma naturalização do estupro — explica.
Para Julia, o processo de se reconhecer como vítima de estupro tem sido longo e doloroso:
— A primeira vez que eu falei ‘eu fui estuprada’ senti o quão forte era isso. A gente imagina aqueles estupros de beco, que o corpo foi achado num matagal dias depois, quando não é isso. Isso acontece todo dia, dentro de casa, e muitas vezes você nem entende que está sendo estuprada ou violada — diz a atriz, que conta ter recebido dezenas de relatos parecidos desde que sua história veio a público.
‘A estrutura protege o agressor’
Pela lei, qualquer ato sexual em que haja coerção ou constrangimento mediante força ou grave ameaça é um estupro. Nos casos de estupro marital, as mulheres estão protegidas não só pelo Código Penal, mas também pela Lei Maria da Penha, que contempla a violência sexual no contexto doméstico, explica a defensora Flávia Nascimento.
Julia conta que após entender a violência que sofreu, buscou orientação jurídica para fazer uma denúncia formal. No entanto, foi informada que até setembro 2018 valia uma regra que determinava que a violência sexual tinha que ser denunciada em até seis meses do ocorrido. Como esse prazo já tinha vencido, a atriz não pode buscar uma resposta na Justiça contra seu ex-parceiro. Para os casos ocorridos depois isso, esse prazo não se aplica mais e as vítimas têm mais tempo para decidir denunciar ou não.
— Na época, eu já sabia de outra mulher que tinha sofrido a mesma coisa por essa mesma pessoa. Fiquei muito frustrada por não poder denunciar. Mas decidi compartilhar a minha história como uma forma de alertar outras mulheres que estão nessa situação e ainda podem buscar justiça. Até porque, a principal violência que eu sofri não é muito falada, nem sequer entendida. Achei que seria muito importante trazer isso a público e abrir esse debate.
A decisão pela denúncia não é comum. Muitas mulheres acabam não revelando a violência que viveram, ou ainda vivem, por sentirem culpa, vergonha e pelo medo de serem desacreditadas.
— A mulher que sofre violência sexual ainda é muito desacreditada. Os estereótipos de gênero ainda permeiam todo o sistema de Justiça. Além disso, essa é uma violência muito difícil de provar, porque assim como qualquer violência doméstica e familiar, ela é praticada no ambiente privado e raramente há testemunhas. Há toda uma estrutura cultural que acaba protegendo esse sujeito e até fomentando a prática — diz Nascimento.
As possíveis consequências para a vítima são inúmeras e vão desde a perda total da autoestima, ao estresse pós-traumático, até depressão e ideações suicidas, explica a psicóloga Kátia Rosa. Por isso, ela recomenda que a mulher busque ajuda de alguma forma, mesmo que não deseje fazer uma denúncia formal.
— Quando se percebe nessa situação, é importante buscar ajuda. Conversar com a melhor amiga, com uma confidente, com o médico do posto, a ginecologista, buscar uma rede de apoio para se fortificar e ver qual é a saída que existe para essa situação de violência — diz Rosa, ressaltando que essa escuta deve ser feita por profissionais, familiares ou amigos sem julgamentos.
Nascimento também orienta que, se resolver denunciar, a mulher pode buscar ajuda e orientação na defensoria pública para que não seja revitimizada durante o processo.
Fonte: Agência Patrícia Galvão