Um dos maiores obstáculos para mulheres que sofrem agressões de seus maridos conseguirem se separar é a dependência financeira. Muitas vezes, as vítimas são esposas que se dedicam à casa e à família e não têm fonte de renda. Sem meio de sobreviver pela falta de dinheiro e com medo de não ter como sustentar os filhos, a única opção acaba sendo continuar no casamento, mesmo estando submetida à violência doméstica.
Foi pensando nisso que o estado de Rondônia iniciou, no dia 31 de dezembro de 2021, o pagamento das primeiras parcelas do programa Mulher Protegida, auxílio financeiro a vítimas de agressões em ambiente doméstico. O benefício, no valor de R$ 400, será pago em seis parcelas, e a beneficiária pode gastá-lo como preferir.
Em outras cidades do país, programas semelhantes também ajudam financeiramente as vítimas. Em Niterói (RJ), é pago um auxílio de R$ 1.000 desde novembro do ano passado. Na cidade do Rio de Janeiro, o auxílio começa a valer a partir desta terça-feira (18), quando será lançado o Cartão Mulher Carioca, também no valor de R$ 400, para mulheres em situação de violência doméstica e de vulnerabilidade.
Como programa estadual, Rondônia é pioneiro. Atualmente, outras localidades oferecem programas a mulheres nessa situação, mas na forma de auxílio-aluguel, como ocorre em São Paulo, Maranhão e Goiás. Nesses casos, é pago um valor para que a vítima possa alugar um imóvel e sair da casa do agressor.
Com três filhos, ela vai pedir o auxílio: ‘Vivia do que meu marido me dava’
O programa Mulher Protegida vai destinar R$ 1,5 milhão do Fundo Estadual de Combate e Erradicação da Pobreza para o pagamento dos benefícios. A ação foi idealizada por causa do aumento progressivo do número de violência doméstica no estado. De acordo com o Anuário da Violência do Fórum de Segurança Pública 2021, o número de medidas protetivas de urgência distribuídas e concedidas pelo TJRO (Tribunal de Justiça de Rondônia) cresceu 38,3% em um ano. Foram 3.936 medidas concedidas em 2019 e 5.444 em 2020.
Vítima de violência doméstica em um casamento que durou 13 anos, a assistente de serviços gerais Neyla Araujo, 37, soube do auxílio porque uma amiga compartilhou a informação no status do WhatsApp, mas ainda não tinha feito a inscrição no programa quando conversou com Universa. “Hoje tenho que cuidar dos meus três filhos, e isso pesa muito financeiramente. Esse mês, por exemplo, vou ter material escolar para comprar. O auxílio ajudaria muito nestes meses.”
Ela mantém contra o marido uma medida protetiva — um dos critérios para se cadastrar no Mulher Protegida. Durante a relação, sofreu violências psicológicas, físicas e sexuais do marido, que era motoboy. Neyla ficava em casa cuidando dos afazeres domésticos e dos filhos.
“Não tinha voz nem perspectiva de vida, vivia do que o meu marido me desse e quando ele me dava”. E o que o seu ex-companheiro oferecia era pouco. Ela lembra que precisava pedir ao marido até mesmo para comprar absorventes menstruais. “Lembro ele falando para eu usar panos e camisas velhas”, conta.
Sem dinheiro, vítimas ficam encurraladas
O primeiro pagamento do programa foi comemorado entre as redes de mulheres que trabalham na prevenção e combate à violência doméstica em Porto Velho, como Tereza Reis, presidente da associação As Guerreiras da Leste, organização que acolhe, orienta e faz cursos e doações a mulheres em situação de vulnerabilidade.
“Tem mulheres que se separaram e estão morando na casa de alguém de favor, então com certeza este programa vai ajudar muito. Há muitas com filhos e sem condições financeiras, que passaram por violência e querem se divorciar, mas ainda se sentem encurraladas.”
Tereza criou a organização depois de um casamento que durou 16 anos, período em que sofreu agressões físicas, inclusive durante as gestações dos três filhos. “Tinha medo de largar meu marido, passar fome e ir para a rua”, lembra. Hoje, são mais de 208 mulheres cadastradas na Guerreiras da Leste. “E elas têm me procurado muito para falar sobre esse auxílio”, conta Tereza, que ainda buscava informações sobre como funcionava o benefício para orientar as moradoras da região leste da capital do estado.
Para receber benefício, é preciso ter medida protetiva e cadastro no CadÚnico
Além de ter uma medida protetiva de urgência vigente contra o agressor, a mulher deve estar cadastrada no CadÚnico, do governo federal, ter renda familiar de até três salários mínimos e possuir residência no Estado quando solicitar o benefício. Mulheres gestantes, idosas, com dependentes ou deficiência têm prioridade no recebimento do auxílio.
As parcelas do benefício também podem ser antecipadas em um pagamento só. O programa também oferece capacitação profissional, por meio da qual as mulheres assistidas fazem cursos de especialização e têm acompanhamento psicossocial.
“Muitas vezes essa mulher nunca trabalhou porque o marido não a deixava sair de casa. Ela ficava à mercê do provedor, que seria o próprio agressor”, diz Vitória Vilarruel, diretora da Associação Filhas do Boto Nunca Mais, grupo que presta auxílios à vítimas de violência de gênero.
Para Vitória, a dependência financeira destas mulheres foi agravada pelo contexto da pandemia. “Algumas, por exemplo, que trabalhavam como diaristas e não puderam mais trabalhar por conta da pandemia, além de ter recursos cortados, também passaram a ficar mais tempo com o marido que as agredia. É todo um ciclo”, diz.
Com dinheiro para se sustentar, chance de não desistir do processo aumenta
A defensora pública Flavia Nascimento, coordenadora de Defesa dos Direitos da Mulher da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro, diz que ainda é cedo para fazer avaliações sobre a efetividade dos programas como o de Rondônia e Niterói. No entanto, ela percebe que medidas financeiras incentivam vítimas a prosseguir com ações judiciais, como a medida protetiva ou ação penal.
“Percebemos que muitas vezes as mulheres desistiam das medidas protetivas e retornavam à convivência com o sujeito que praticou reiteradas agressões porque ela se sentia completamente dependente. Por exemplo, a partir do momento que a mulher decidia romper o relacionamento como seu agressor, e ele dificultava o pagamento da pensão alimentícia para os filhos ou criava estratégias para que essa mulher continuasse a ser dependente dele. Isso também é uma forma de violência patrimonial.”
A defensora pública avalia que programas que garantam renda, ainda que temporária, são fundamentais para que elas possam romper o ciclo, mas também afirma ser necessário avaliar continuamente a necessidade de manutenção do benefício.
“Muitas vezes três meses podem ser suficientes para que a mulher se insira no mercado de trabalho, mas também pode não dar conta se a vítima não tiver nenhuma qualificação. Ela primeiro tem que se qualificar para, depois, se inserir no mercado de trabalho. Mesmo seis meses talvez seja um período muito curto para isso”
Como pedir o auxílio
Para se inscrever no programa em Porto Velho, as mulheres devem procurar a Central do Programa Mulher Protegida, na Secretaria Estadual de Assistência Social. Em outras cidades, a inscrição é realizada no Creas (Centro de Referência Especializado de Assistência Social) ou Cras (Centro de Referência de Assistência Social). A meta do estado é beneficiar mais de 700 mulheres vítimas de violência doméstica e familiar, com medida protetiva de urgência vigente, em situação de vulnerabilidade socioeconômica.
Em Niterói, o canal de contato é o WhatsApp, por meio do número (21) 98204-4306. Os casos que chegam são avaliados pela equipe técnica do Ceam (Centro Especializado de Atendimento à Mulher em Situação de Violência), que vai acompanhar o atendimento às vítimas.
Em outros estados, a orientação é procurar o Creas ou o Cras para saber se o serviço é oferecido em sua localidade.
Fonte: Universa