A ex-deputada federal reflete sobre as razões que levaram Jacinda Ardern a renunciar ao cargo de primeira-ministra da Nova Zelândia
Por que mulheres desistem?
Quantos líderes homens você já ouviu falar sobre seus limites para exercer o tão cobiçado poder?
Quem lembra de Jacinda Ardern interrompendo uma live para colocar a criança para dormir?
Falo sobre uma das reflexões que fiz quando decidi não concorrer e que acho válida. Quando a gente toma uma decisão importante nunca decide baseado em uma única razão, né? Mas essa certamente foi determinante para mim.
Volto a 2016, quando não concorri, ou a 2018, quando ouvi de um homem que minha filha me acompanhava demais. Quem cuidava das crianças dele em suas longas ausências? Um dia a gente vai debater publicamente sobre isso. Quem cuida das crianças dos homens políticos?
Muitas vezes eu respondia aos meus interlocutores que me provocavam para concorrer ao Senado nas eleições de 2022: ‘Olha, minha filha precisa de mim nesse momento, não foi fácil o que vivemos no último período’. Eles interpretavam isso como um gesto equivocado meu. Como se eu estivesse cedendo aos ataques ou virando uma pessoa menor.
Claro, eu entendo as razões para que ninguém fale sobre família quando um homem político se movimenta no cenário como quem joga xadrez. Mas esse pra mim também é um tema. Ir para Brasília causa impacto na vida das famílias dessas pessoas. Ocorre que, na maior parte das vezes, essas pessoas são homens que não calculam esses impactos na vida de suas esposas e crianças.
Volto a 2016, quando não concorri, ou a 2018, quando ouvi de um homem que minha filha me acompanhava demais. Quem cuidava das crianças dele em suas longas ausências de 15, 20 dias? Eu vivo em uma casa em que responsabilidades afetivas e com cuidados são compartilhadas. Sei que essa não é a realidade da maioria das mulheres. Sei que a forma como Duca, meu marido, assume essa jornada, não lembra em nada a realidade de praticamente nenhum dos homens com quem cruzei na jornada política.
Um dia a gente vai debater publicamente sobre isso. Quem cuida das crianças dos homens políticos? Canso de ver matérias em jornais sobre políticos europeus que vão de bicicleta ou ônibus para o trabalho. Acho interessante nossa preocupação com transporte e sustentabilidade ou mesmo com os padrões de vida proporcionados aos políticos de cada país. Mas nunca li uma linha sobre a dinâmica da política e a rotina de cuidados.
Alguém já se perguntou por que as sessões das casas legislativas começam, em geral, no fim do dia? Por que a reunião de líderes é no horário do almoço? É o mundo dos homens. Dos horários de quem não sabe o nome da professora da criança, de quem chega em casa com a geladeira abastecida e a camisa passada
Sei que num país desigual como o nosso, mulheres (majoritariamente brancas, assim como eu) eventualmente ocupam espaços de poder contando com outras mulheres para dar conta das responsabilidades familiares que são tidas como delas: levar e buscar filho na escola, organizar as refeições e a limpeza das famílias. Muitas, flertando com o feminismo liberal, dizem ter rompido o teto de vidro imposto pelo machismo quando chegam lá. Mas romperam exatamente com o quê, se esse lugar não pode ser ocupado por qualquer mulher?
A gente vive debatendo as razões pelas quais as mulheres não fazem política. Mas cabe na política o mundo invisível (porque invisibilizado) do trabalho reprodutivo? Não. Vocês já pararam para pensar que quando estamos numa reunião sobre a cidade, muitas mulheres estão preparando a comida da família? Já pensaram que a cada cara feia para uma mulher que se desloca para uma atividade com sua criança, uma porta se fecha para quem assume sozinha essas responsabilidades que deveriam ser todos?
Alguém já se perguntou por que as sessões das casas legislativas começam, em geral, no fim do dia? Por que a reunião de líderes é no horário do almoço? Não dá pra ter um horário compatível com a vida em sociedade? É o mundo dos homens. Dos horários de quem não sabe o nome da professora da criança, de quem chega em casa com a geladeira abastecida e a camisa passada.
*Texto originalmente publicado por Manuela d’Ávila em seu perfil no instagram.