Débora Fogliatto
Uma mulher sofre violência perpetuada por seu marido. Para obter ajuda, procura a Delegacia de Atendimento à Mulher (DEAM), mas, chegando lá, depara-se com o fato de que não pode entrar no local, ao enxergar uma escada e a perceber a falta de rampas ou elevadores. Esse cenário, aqui colocado de forma fictícia, é a realidade para mulheres com deficiência física, e foi constatado por Carolina Santos, coordenadora da ONG Inclusivass, que, ao avaliar os mecanismos de atendimento, percebeu a falta de acessibilidade na maioria deles.
Para debater essa e outras questões relacionadas ao acesso de mulheres com deficiência a políticas públicas, a organização elaborou o projeto Todas São Todas, que se desenvolve de março a novembro de 2016 em Porto Alegre. Uma das ações propostas foi a Capacitação sobre a Inclusão de Mulheres com Deficiência nas Políticas de Enfrentamento à Violência Doméstica e demais políticas, que aconteceu nesta sexta-feira (15) e sábado (16), no City Hotel, reunindo dezenas de mulheres com e sem deficiência para debater o assunto.
No Brasil, segundo dados do IBGE de 2010, há quase 26 milhões de mulheres com algum tipo de deficiência, dentre as quais pode-se destacar a física, a visual, a auditiva, a intelectual, a psicossocial e a múltipla. “Somos muitas com algum tipo de deficiência, que enfrentamos desigualdades de gênero, falta de oportunidades, de direito, de inclusão e de cidadania. Ficamos expostas a vários tipos de vulnerabilidade, sofrendo um duplo preconceito”, afirmou Carolina.
Muitas vezes, como é o caso dela, a violência sofrida é a causa da própria deficiência. A coordenadora do grupo Inclusivass foi vítima de violência doméstica aos 17 anos, situação que mudou sua vida. “Agora, todos os dias tenho que me superar em vários obstáculos, ao sair de casa, ser mãe, trabalhar. Muitas vezes acaba sendo muito pesado, vivemos em sociedade muito desigual”, constata. Ela citou algumas violências sofridas por essas mulheres: isolamento forçado; confinamento e ocultação dentro de casa pela própria família; abusos e estupros; coerção a fazerem abortos quando engravidam.
O Inclusivass está ligado ao Coletivo Feminino Plural e foi criado em 2014, no Primeiro Seminário de Políticas Públicas para Mulheres com Deficiência, e, com o projeto Todas são Todas, objetiva elaborar estratégias tendo como base as necessidades dessas mulheres. Elas partem do princípio de que a falta de inclusão perpassa todas as áreas, nas quais muitas vezes não se sentem incluídas, como saúde e educação, e chega até ao atendimento para vítimas de violência. “Constatamos que o Centro de Referência e a DEAM ainda estão muito atrasados em relação a incluir as mulheres com deficiência. Além da questão da escada, constatamos a barreira comunicacional também, devido à falta de intérprete [de Libras] nos espaços das redes de atendimento”, apontou Carolina.
Um dos debates ocorridos ao longo do evento, que segue com a programação neste sábado (16), teve como tema Diversidade Entre as Mulheres. Na situação, mulheres com diversas características falaram das semelhanças e diferenças nas violências que sofrem. “Esse isolamento que a Carol citou, pelo qual passam as mulheres com deficiência, também temos discutido no movimento de mulheres negras. Tem ainda aquela ideia de que as mulheres negras não são pra casar, são as ‘amantes’. Dá pra fazer essa relação das nossas similaridades de vivência”, apontou a psicóloga Simone Cruz, coordenadora da Associação Cultural de Mulheres Negras (ACMUN).
Priscila Leote, do Coletivo Outra Visão, abordou as especificidades das mulheres lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais, que, além do machismo, também enfrentam violências pela sua identidade de gênero ou orientação sexual. “Os requintes de crueldade das mortes das travestis e transexuais faz com que sejam muito parecidas com as mortes por violência doméstica. Isso porque a morte está no feminino, não está na orientação e nem na prática sexual. O machismo vem mais uma vez nos matar por sermos mulheres”, apontou.
No caso específico das mulheres lésbicas, estas sofrem agressões quando são mais masculinizadas (para ‘aprenderem a ser mulher’) e também quando são mais femininas (e ouvem que ‘não encontraram o homem certo ainda’), incluindo estupro “corretivo”, para que “comecem a gostar de homens”. Essas violências atingem as pessoas que estão desviantes do padrão binário masculino-feminino, apontou Fernanda Nascimento, do grupo Gemis.
Falta de acessibilidade também é violência
A impossibilidade de se movimentar plenamente na cidade é um dos maiores desafios citados pelas mulheres com deficiência. Para Giselle Hübbe, que tem baixa visão, a mobilidade urbana é a principal dificuldade em seu dia a dia, a qual se manifesta muitas vezes de forma machista. “Nossos trajetos são difíceis e demorados. E quando vou atravessar uma rua e não vejo que tem um carro vindo, ou quando esbarro em alguém, por exemplo, sou xingada de ‘puta’, ‘vagabunda’”, conta ela. Além disso, ao sofrer algum assédio ou abuso na rua, por não conseguir identificar o agressor, também não consegue denunciar, menciona Giselle.
Identificar buracos, degraus, início de calçadas é uma tarefa complicada também para Mariana Baierle, que tem 10% da visão e apenas “em cone”, ou seja, só enxerga para frente, sem visão periférica. “As pessoas com baixa visão por vezes são invisíveis. Até na questão da leitura, existe um padrão que é a fonte Arial Black 24, que muitos conseguem enxergar, mas que raramente é encontrado. Mesmo dentro do universo das pessoas com deficiência, as coisas não são pensadas para nós”, afirma.