O Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, firmado em 1966 e ratificado pelo Brasil por meio do Decreto 592/1992 prevê em seu artigo 3º que “Os Estados Partes no presente Pacto comprometem-se a assegurar a homens e mulheres igualdade no gozo de todos os direitos civis e políticos enunciados no presente Pacto” e em seu artigo 25 que “Todo cidadão terá o direito e a possibilidade, sem qualquer das formas de discriminação mencionadas no artigo 2 e sem restrições infundadas: a) de participar da condução dos assuntos públicos, diretamente ou por meio de representantes livremente escolhidos; b) de votar e de ser eleito em eleições periódicas, autênticas, realizadas por sufrágio universal e igualitário e por voto secreto, que garantam a manifestação da vontade dos eleitores; c) de ter acesso, em condições gerais de igualdade, às funções públicas de seu país”. Violações a direitos previstos nesse pacto são sujeitas a controle por Comitê instituído para controle dessas denúncias.
A Convenção CEDAW- Convenção Para Eliminação de Todas as Formas de Violência contra a Mulher, do qual o Brasil é signatário, traz como um de seus fundamentos a participação máxima da mulher em igualdade de condições com o homem, em todos os campos, considerando-a indispensável para o desenvolvimento pleno e completo de um país, o bem–estar do mundo e a causa da paz. Em seu artigo 7º, ela expressa a necessidade de que as medidas apropriadas para eliminar a discriminação contra a mulher na vida política e pública sejam adotadas no país, garantindo-se, em igualdade de condições com os homens, o direito de votar em todas as eleições e referenda públicos e ser elegível para todos os órgãos cujos membros sejam objeto de eleições públicas; participar na formulação de políticas governamentais e na execução destas, e ocupar cargos públicos e exercer todas as funções públicas em todos os planos governamentais; além de participar em organizações e associações não-governamentais que se ocupem da vida pública e política do país.
A Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher – Convenção de Belém do Pará, assegura que toda mulher poderá exercer livre e plenamente seus direitos civis, políticos, econômicos, sociais e culturais e contará com a total proteção desses direitos consagrados nos instrumentos regionais e internacionais sobre direitos humanos; reconhece-se que a violência contra a mulher impede e anula o exercício desses direitos.
O ideal previsto nos tratados internacionais não se reflete na realidade brasileira.
A ONU Mulheres divulgou o Mapa Mundial de mulheres na Política, um retrato de janeiro de 2017. Dos 193 países pesquisados no espaço do parlamento, o Brasil encontra-se na 154ª posição. Na Câmara dos Deputados, mulheres são 55 das 514 cadeiras, o que corresponde a 10,7% do total de deputados; no Senado, 12, das 81 cadeiras, o equivalente a 14, 8% do total de senadores.
A Procuradoria Regional Eleitoral de São Paulo aponta em seu sítio um mapa interativo que indica a representatividade feminina no Estado São Paulo. Ali se verifica que dos 645 municípios paulistas, menos de 10% elegeram prefeitas, que o percentual de vereadoras eleitas gira em torno de 8% do total de cadeiras em Câmaras Municipais e que em 147 municípios paulistas nenhuma mulher foi eleita para nenhum cargo.
O quadro atual ainda está longe do ideal de representação das mulheres na política, que deveria ser no mínimo proporcional ao da população feminina do país: 51,5%. Inexoravelmente, a sub-representatividade da mulher esbarra no princípio constitucional da igualdade e na violação dos direitos políticos enquanto direitos históricos.
Visando aumentar a representatividade feminina na política, o legislador inseriu em 2012 na legislação eleitoral disposições que estimulem a redução de desigualdade entre a representatividade de homens e mulheres, ao determinar, o preenchimento de cotas (ou quotas) na composição das candidaturas partidárias no mínimo de 30% e o máximo de 70% para candidaturas de cada gênero; a utilização de percentual mínimo de 5% e no máximo de 15% do total de recursos do fundo partidário na criação e manutenção de programas de promoção e difusão da participação política das mulheres e possibilidade de utilização futura em campanhas eleitorais de candidaturas do partido e fixação de tempo mínimo de 10% na propaganda.
Os debates subsistem no Congresso Nacional, onde tramita a PEC 134/2015, que busca a reserva de cadeiras para mulheres nas casas legislativas e não apenas a reserva de vagas nas candidaturas. Após a promulgação da PEC 134/2015, caso não se atinja o percentual de 30% de mulheres eleitas, as vagas necessárias serão preenchidas, dentro de cada partido, por candidatas mulheres que tenham obtido a maior votação nominal entre os partidos que atingiram o quociente eleitoral, para que na primeira legislatura pelo menos 10% das vagas das Câmaras dos Deputados, nas Assembleias Legislativas, na Câmara Legislativa do Distrito Federal e nas Câmaras Municipais, sejam reservadas às mulheres. Na segunda legislatura o percentual passaria para 12% e, na terceira, para 16%.
Não obstante, mesmo com tais medidas afirmativas, o que vemos é um Brasil atrás de mais de uma centena de países e que figura entre os 40 últimos do mundo em relação à representatividade da mulher no espaço da política, ficando atrás inclusive do Afeganistão e do Iraque.
Se em meados de 1930 as sufragistas se empenhavam para o direito ao voto no país, em pleno 2017 as mulheres buscam o direito de serem votadas; o que é pior, o fato que o direito à igualdade da mulher na política é mascarado por uma série de violências contra a mulher na política, o que tem sido alvo de intervenção por parte do Ministério Público.
No que pertine à política de cota de gênero, o Ministério Público de São Paulo apurou, em seus 149 procedimentos preparatórios eleitorais (PPEs), bem como nas 45 ações de investigação judicial eleitoral, 13 ações de impugnação de mandato eletivo e 60 inquéritos policiais, várias das formas de violência contra a mulher no espaço político, especialmente no processo de candidatura das mulheres para cumprir as cotas exigidas por lei.
Basicamente quatro tipos de burla foram identificados:
a) mulher filiada ao partido torna-se candidata sem ser previamente consultada;
b) lançamento de candidatura de mulher inelegível apenas para cumprir o percentual de gênero;
c) mulher utilizada pelo partido político apenas para preencher o percentual da cota de gênero para possibilitar o lançamento da chapa do partido. Não tem interesse nenhum de se eleger, não realiza campanha e na maioria das vezes renuncia a sua candidatura e não é substituída por outra mulher.
d) mulher é induzida a cumprir a cota de gênero em razão de sua influência e penetração em determinado eleitorado e não recebe financiamento algum para sua campanha, mas apenas um mínimo de propaganda para indiretamente colaborar coma chapa ao cargo majoritário. É usada para cumprir o papel de “boca de urna” ou de “cabo eleitoral”, sem nenhuma retribuição.
Nas eleições municipais de 2015, 12,5% das candidatas do sexo feminino em todo o Brasil não obtiveram nenhum voto, contra 2,6% dos candidatos do sexo masculino. Tais dados revelam que os partidos políticos fraudaram diretamente a lei de cotas, alijando a efetiva participação feminina o que, além de ser uma política antidemocrática, não deixa de ser uma forma de violência contra a mulher.
Outra prática de exclusão das mulheres e, pois, de violência, consiste na destinação insignificante de dinheiro do fundo partidário para a campanha eleitoral feminina e para a criação de manutenção de programas de promoção e difusão da participação das mulheres. A legislação exige a destinação mínima de 5% e máxima de 15% do dinheiro do fundo para a campanha eleitoral das mulheres, sob pena de acréscimo de 12,5% do valor previsto, a ser aplicado para essa finalidade (art. 22, parágrafo 1º, da Resolução TSE n. 23.464/2015).
A verificação desse percentual pode ser constatada na prestação de contas anual do partido em âmbito nacional, estadual e municipal. Mesmo com a aplicação do percentual mínimo de 30%, as mulheres não conseguiram resultados significativos nas urnas, o que demonstra que a política pública de gênero não conseguiu cumprir sua finalidade. A sanção para o partido que descumpre este percentual é singela: ele deverá aplicar mais 12,5% do valor previsto e não poderá utilizar estes recursos de maneira diversa. A sanção para o descumprimento desta destinação de verba deveria implicar na perda do recurso do fundo partidário para o partido político descumpridor da lei.
Com relação ao horário político, a distribuição de tempo também não surtiu o efeito esperado no desempenho eleitoral das mulheres, porque as candidatas ainda continuam sem ter visibilidade que as permitam torná-las conhecidas em razão das atividades praticadas por elas dentro de sua comunidade perante a sociedade.
Tais burlas caracterizam verdadeira violência contra a mulher no espaço político. São exemplos que configuram algumas das diversas formas de violência contra a mulher durante o processo de candidatura, formas estas que também são reproduzidas durante o período das eleições e, até mesmo, durante o exercício do próprio mandato. Além das fraudes ou manipulação das cotas de gênero, candidatas sofrem assédio durante as campanhas eleitorais. Ao mesmo tempo que são desqualificadas intelectualmente quando se coloca em cheque sua competência, são enaltecidas somente em razão de suas qualificações físicas. Não bastasse isso, por vezes seus discursos são interrompidos com ataques verbais de conotação sexual. Conclui-se, portanto, que as candidatas mulheres são submetidas a várias formas de violência que acabam por atingi-las não só apenas economicamente em virtude da ausência do financiamento de suas campanhas eleitorais, mas principalmente moralmente e psicologicamente.
O que se busca com o cumprimento da lei de cotas femininas nas eleições é a redução da desigualdade exposta pelos números. Trata-se de ação afirmativa que visa contribuir com a igualdade e com a equivalência de oportunidades a pessoas em situações desiguais.
A realidade precisa mudar e a igualdade não pode ser apenas formal. O Ministério Público tem buscado contribuir na sua atribuição constitucional de defesa da ordem jurídica e do regime democrático mas o seu enfrentamento depende do comprometimento de toda a sociedade, do amplo debate, da conscientização dos partidos políticos sobre a pluralidade representativa e sobre o salto de qualidade que a política pode experimentar com o incremento da participação feminina. Mas, principalmente, a mudança depende da valorização da mulher em todos os espaços.
* Aline Zavaglia, Ana Laura Lunardelli, Fabíola Sucasas Negrão Covas e Vera Lúcia de Camargo Braga Taberti são promotoras de Justiça do Ministério Público de São Paulo
Fonte: Estadão