A lei 13.104/2015, a qual prevê a penalização para crimes de feminicídio, que caracteriza o assassinato de mulheres por conta da discriminação de gênero, tem como finalidade não só diminuir a “invisibilidade” desses casos, mas “dar visibilidade ao problema, conhecer melhor sua dimensão e o contexto em que ele acontece para poder embasar políticas públicas para proibir e coibir o feminicídio”, diz Débora Prado à IHU On-Line, na entrevista a seguir, concedida por telefone.
Acesse o Dossiê Feminicídio #InvisibilidadeMata
Segundo ela, hoje há uma “naturalização dessas discriminações baseadas em gênero, raça, classe, idade, nacionalidade e contra a população LGBT”. É por conta dessa naturalização, frisa, que as violências “se perpetuam, chegando ao extremo do assassinato, o feminicídio”.
(Instituto Humanitas Unisinos, 25/11/2016 – acesse no site de origem)
Débora também avalia que “ainda há um senso comum muito grande que questiona por que tem que existir uma lei como o feminicídio, uma vez que existem mais homicídios de homens do que de mulheres”. Entretanto, responde, “não queremos hierarquizar os crimes, nem dizer que o feminicídio é mais importante do que outros crimes. Queremos mostrar que ele é diferente, que tem características diferentes e que demanda respostas diferentes”.
Débora Prado é jornalista do Instituto Patrícia Galvão e foi uma das organizadoras do Dossiê Feminicídio, que tem como finalidade “debater algumas perguntas que consideramos essenciais para desnaturalizar essas discriminações que alimentam violências”.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Quais são os principais dados apresentados pelo Dossiê Feminicídio?
Débora Prado – A ideia desse dossiê surgiu a partir do monitoramento cotidiano que fazemos das violências contra as mulheres, inclusive dos casos de feminicídio. Observamos que muitas das discriminações que estão por trás das violências contra as mulheres são perpetuadas, apesar de termos todo um avanço da Lei Maria da Penha, da constituição de redes de enfrentamento da violência, de mais e mais ativistas e pesquisadores discutindo as desigualdades de gênero e de raça. Percebemos, inclusive, que muitos dos preconceitos que estão por trás dessas mortes e de outras violências ainda são muito naturalizados no cotidiano, inclusive pela imprensa, segundo o monitoramento de mídia que fizemos.
Assim, construímos o Dossiê Feminicídio com a proposta de elencar e debater algumas perguntas que consideramos essenciais para desnaturalizar essas discriminações que alimentam violências. Com isso buscamos construir dois eixos. Um deles chamamos de “Para entender”, no qual tentamos elencar perguntas essenciais como “O que é feminicídio?”. Apesar de termos uma lei no Brasil, muitas pessoas ainda não sabem que essa lei existe e que o feminicídio é um tipo penal específico para punir casos em que as mulheres morrem em razão da discriminação de gênero, e também não sabem o que quer dizer esse conceito e por que precisamos nomear de forma diferente esse tipo de crime. Ainda há um senso comum muito grande que questiona por que tem que existir uma lei como o feminicídio, uma vez que existem mais homicídios de homens do que de mulheres. É importante dizer que não queremos hierarquizar os crimes, nem dizer que o feminicídio é mais importante do que outros crimes. Queremos mostrar que ele é diferente, que tem características diferentes e que demanda respostas diferentes.
Por que mulheres morrem?
Como e por que morrem as mulheres é outra discussão que apresentamos nesse Dossiê. Outro ponto de debate é por que mulheres negras morrem mais. Segundo os dados do Mapa da Violência 2015, em 10 anos o assassinato de mulheres negras subiu 54%, enquanto o assassinato de mulheres brancas caiu quase 10%. Então, como esse componente racial age para expor as mulheres ao risco de violência e de feminicídio? Também discutimos como evitar mortes anunciadas. Isso é algo para o qual buscamos chamar a atenção. O conceito de feminicídio aponta para as raízes discriminatórias desse crime, porque ele está associado à violência e às discriminações contra as mulheres; além disso, uma parte significativa desses crimes é considerada como morte anunciada, por exemplo aquelas mortes que acontecem em contexto de violência doméstica e familiar.
Muitas vezes sabemos que as mulheres procuram a delegacia da mulher, até conseguem uma medida protetiva, mas, ainda assim, são assassinadas, são vítimas de feminicídio. Nesses casos, além de apontar que essas mortes são anunciadas e que já existem leis e serviços que, se efetivados com seriedade, podem evitar que isso ocorra, temos que apontar a responsabilidade do Estado na perpetuação dessas mortes, porque é um dever do Estado implementar essas leis e esses serviços.
Também tentamos discutir qual a relação entre a violência contra as mulheres e outros contextos de insegurança pública, como enfrentar o problema nas diferentes realidades em que vivem as mulheres em um país como o Brasil, de uma extensão quase continental. Ao levantarmos todos esses questionamentos, tentamos relacionar como as questões de orientação sexual e identidade de gênero podem deixar as mulheres mais vulneráveis a certos tipos de violência e, com isso, debater a violência contra as mulheres lésbicas, bi, travestis e trans.
Invisibilidade
Ao elencar essas questões, entrevistamos dezenas de especialistas, ativistas, operadores do direito e pesquisadores que lidam com esses temas. A partir disso chegamos a uma síntese que deu origem ao nome do dossiê: Feminicídio, invisibilidade mata — e usamos até a hashtag #invisibilidademata. Grande parte do problema é, justamente, a invisibilidade dessas discriminações. Ou seja, é a naturalização dessas discriminações baseadas em gênero, raça, classe, idade, nacionalidade e contra a população LGBT. É a naturalização de tudo isso, no dia a dia, que autoriza essas violências e faz com que elas se perpetuem, chegando ao extremo do assassinato, o feminicídio. Esse é um dos principais achados do dossiê, um eixo incomum que encontramos ao tentar responder a tantas perguntas.
A segunda parte do dossiê se chama “Para saber mais”, onde tentamos oferecer ferramentas para interessados em construir esse debate e tentar viabilizar esse tema e essa agenda por direitos. Construímos ferramentas para apoiar essas pessoas no seu dia a dia. Então, jornalistas, comunicadoras, ativistas, pesquisadoras, enfim, qualquer pessoa que esteja interessada em entrar nesse debate pode acessar o dossiê e encontrar um banco de pesquisa, com dados sobre o tema e um banco de fontes.
Nesta parte do dossiê também apresentamos uma cronologia dos direitos das mulheres, pois trazemos os principais tratados e leis e apontamos as obrigações do Estado brasileiro nessa frente. Apresentamos ainda as Diretrizes Nacionais sobre o Feminicídio, que foi um documento feito pela ONU Mulheres em parceria com a Secretaria de Política para as Mulheres. Reunimos legislações de outros países que também criaram tipos penais de feminicídio, na América Latina, para tentar mostrar esse contexto. Enfim, o dossiê tenta oferecer ferramentas para consulta rápida para quem quiser entrar nesse debate poder ter isso à mão, ter acesso de forma facilitada.
IHU On-Line – É possível identificar qual o perfil das mulheres vítimas de homicídios? E por que as mulheres negras são as principais vítimas desse crime?
Débora Prado – Infelizmente a violência contra as mulheres é um fenômeno democrático. Não poderíamos falar de um perfil de mulheres que morrem, mas os casos que vemos e que são mais facilmente identificados e registrados são aqueles praticados por parceiros ou por ex-parceiros. Portanto, não sabemos se esses são os casos que acontecem mais ou se são os que as pessoas identificam mais facilmente como um feminicídio. Mas vemos muitos casos de relações violentas, em que há violência contra a mulher em uma relação afetiva, conjugal, em que o parceiro ou o ex é o agente desse assassinato. Esses são os casos que mais chegam ao sistema de justiça. Também há situações associadas à violência sexual, em que ocorre o estupro e o assassinato. Há casos em que vemos uma misoginia muito forte de tortura, de mutilação de áreas identificadas com o feminino, em que vemos a expressão de um ódio ao feminino.
Mulheres negras
Em relação à questão das mulheres negras, entrevistamos ativistas antirracistas e mulheres negras de organizações, e elas relataram as dificuldades que as mulheres negras têm com o Estado, o qual nós sabemos que não se apresenta da mesma forma para todas as mulheres. No Brasil, há um genocídio da juventude negra pelo Estado, por isso a relação de confiança da mulher negra com o Estado será diferente da relação de confiança da mulher branca, por exemplo, porque a mulher negra poder ter perdido parentes e amigos para o Estado.
Então, um dos fatores que vimos e que essas especialistas nos apontaram com muita força é o peso do racismo institucional. Quando as instituições do Estado não conseguem, efetivamente, eliminar o racismo de dentro do poder público, isso afasta as mulheres dos serviços de acolhimento e proteção. Muitas vezes as mulheres negras buscam a rede de atendimento, de acolhimento e de proteção e são vítimas da reprodução de estereótipos discriminatórios: em vez de serem acolhidas, são vitimizadas nesse serviço.
O terceiro fator que observamos e que essas especialistas apontaram no dossiê, é a questão da precarização da vida como um caminho para a morte, isto é, como o racismo coloca as mulheres negras na base da pirâmide social brasileira. Se olharmos os indicadores, eles revelam um contexto de desigualdade que potencializa o risco de vida ao prejudicar o acesso à justiça e aos direitos das mulheres negras, que são maioria. Tânia Palma, que é assistente social e ex-ouvidora da Defensoria da Bahia, diz que “ser mulher negra em sociedades com tantas discriminações é um perigo; vivemos todos os dias escapando de morrer, escapando de morrer pela ausência de política pública, pela ausência de trabalho, pela ausência da garantia de sobrevivência, quando não somos vítimas diretas da misoginia do racismo e de feminicídio”. Essa frase sintetiza muito bem a situação.
IHU On-Line – Em que contexto surgiu a lei de feminicídio?
Débora Prado – Havia uma crescente pressão tanto da sociedade civil quanto de movimentos organizados, que vinham denunciando, justamente, a omissão e a responsabilidade do Estado na perpetuação da violência e do assassinato das mulheres. Organizações internacionais, como a ONU, fizeram diversos comitês para que os países adotassem ações contra o homicídio de mulheres, e a partir dos anos 2000 diversos países na América Latina incluíram o feminicídio em suas legislações de diferentes formas.
No Brasil o crime é considerado um tipo penal no Código Penal Brasileiro, a partir da vigência da Lei do Feminicídio – Lei 13.104/2015. O Código Penal passou a definir o feminicídio como o assassinato de uma mulher cometido por razões da condição do sexo feminino, quando o crime envolve violência doméstica e familiar — nesse aspecto temos todo o arcabouço da Lei Maria da Penha para definir o que é violência doméstica e familiar — e ou menosprezo da condição de mulher. Com isso o feminicídio passou a ser considerado também um crime hediondo, que são os que o Estado entende como de extrema gravidade. O crime teve um aumento de pena em relação ao homicídio — a pena prevista para homicídio qualificado é reclusão de 12 a 30 anos.
Mais do que um aumento de pena, pelo menos por parte da sociedade civil, o que se espera com a lei do feminicídio é, justamente, dar visibilidade ao problema, conhecer melhor sua dimensão e o contexto em que ele acontece para poder embasar políticas públicas para proibir e coibir o feminicídio.
Para isso acontecer, os operadores do sistema de segurança e justiça precisam qualificar os crimes como feminicídio. Logo, não basta a lei; precisamos que os profissionais que são encarregados de cumprir a lei registrem o crime dessa forma, porque aí sim poderemos ter uma estatística para mapear onde e como as mulheres estão morrendo e tentar aprimorar políticas públicas nessa frente.
IHU On-Line – Como você tem percebido a recepção da instituição da lei do feminicídio?
Débora Prado – Vemos que na sociedade brasileira e nos debates públicos há uma crescente conscientização de mulheres e meninas cada vez mais jovens, em relação à necessidade de debater gênero, raça, direitos sexuais e reprodutivos e uma série de coisas para enfrentar essas discriminações para que a diversidade seja lida como pluralidade, e não como hierarquização de vida de pessoas. Mas ao mesmo tempo há sempre uma reação conservadora. Então, toda vez que se tenta debater um sistema discriminatório em que a hierarquização de vida, em que os direitos de uma determinada população são sistematicamente negados, enquanto os privilégios de outro determinado grupo é sistematicamente protegido, sempre há uma reação.
Quando se institui um tipo penal específico para tratar da violência contra a mulher, não estamos anulando a existência de todos os outros tipos penais que tratam da violência contra homens e mulheres. Ao contrário, só queremos apontar que crimes com motivações e características especificas vão demandar respostas específicas.
Justamente pela invisibilidade que todo esse preconceito e discriminação causam, vemos que o enfrentamento da violência contra as mulheres é relegado ao segundo plano. Na maioria dos estados e municípios, esse não é um tema encarado com a prioridade política que demanda. Em secretaria de segurança pública ou em outras áreas, o orçamento destinado ao enfrentamento das violências contra as mulheres é infinitamente menor do que o orçamento destinado para outras questões. Esse problema da falta de prioridade das políticas públicas leva o Brasil a esse destaque muito triste de ser o quinto país com a maior taxa de assassinato feminino no mundo, enquanto em alguns países a taxa é quase zero. Temos que mostrar que existe, sim, alguma coisa acontecendo e que se não olharmos para esse problema, as mulheres vão continuar morrendo.
IHU On-Line – Em termos de políticas públicas, o que mais poderia ser feito para reverter o quadro de feminicídio?
Débora Prado – Temos que pensar em políticas de prevenção de curto prazo para intervir em casos de violência e para evitar que a morte anunciada de mulheres aconteça. No longo prazo, precisamos entender melhor as raízes discriminatórias desses crimes e trabalhar com educação, formação, mídia e campanhas, que ajudem as relações a serem menos discriminatórias e violentas. Portanto, é preciso prevenir que as violências contras as mulheres sigam acontecendo cotidianamente, inclusive chegando ao extremo do assassinato, do feminicídio.
Por outro lado, precisamos que o Estado, de uma forma ampla, em todas as esferas administrativas, pare de reproduzir a discriminação e relegue esse problema como um problema menor. Vemos exemplos de delegacias das mulheres que não funcionam 24 horas e nem nos finais de semana, e vemos que os juizados de violência doméstica estão abarrotados. Então, esses serviços que existem para efetivar direitos, para efetivar medidas de enfrentamento de violência contra as mulheres, precisam ser fortalecidos. Tememos que isso tudo caminhe na direção contrária, dado o fechamento de secretarias, que são os espaços que vão pensar essas políticas públicas. Por fim, precisamos aprimorar nossas respostas, pensar políticas públicas e novas formas de lidar com a violência.
Por: Patricia Fachin
Fonte: Agência Patrícia Galvão