Entre o risco de vida e o rompimento de todos os vínculos, algumas mulheres vítimas de violência doméstica acabam escolhendo a segunda opção. Com os filhos, deixam para trás amigos e familiares e passam a viver exiladas em um endereço anônimo de Porto Alegre. A vida temporária de privações no abrigo municipal Viva Maria é contada pela história de Giovana, Rosane e Paula
Existe uma casa invisível em Porto Alegre. Há 23 anos está camuflada no mesmo endereço, anônimo, em um bairro residencial da Capital. Personagem oculta em reportagens policiais, reúne histórias de quem abriu mão da rotina, da liberdade e dos vínculos afetivos. Chamado de Casa de Apoio Viva Maria, o local recebe mulheres que escolheram ser exiladas para não morrer pelas mãos dos próprios companheiros.
Viver no abrigo é a ação mais extrema entre as medidas protetivas. O recurso não pune o agressor, principal objetivo da Lei Maria da Penha. Quem vai para uma espécie de prisão é a vítima.
— Pode não ser o ideal, mas antes presas no abrigo do que mortas — avalia a secretária-adjunta da Mulher na Capital, Waleska Vasconcellos.
O exílio se faz ainda mais necessário diante da fragilidade em que se encontra a vítima de violência, já sem forças para reagir diante da rotina de tapas e pontapés — e o medo constante de perder a vida, uma realidade reforçada pelo número de feminicídios registrados no ano passado no Estado. Segundo levantamento da Secretaria de Segurança Pública, houve um aumento de 20,8% desse tipo de crime até setembro em comparação a 2014, reforçando a necessidade do abrigo. Na contramão, dados do Tribunal de Justiça mostram que o número de medidas aplicadas caiu, em média, 7% por mês até outubro de 2015.
— A medida protetiva não é um colete à prova de balas, mas funciona como uma barreira psicológica — observa a juíza Madgéli Frantz Machado, titular do 2º Juizado de Violência contra a Mulher.
Por isso a importância de as vítimas pedirem ajuda para se proteger dos companheiros violentos, que não costumam ser “criminosos comuns”. Eles temem a prisão e não costumam ter antecedentes como roubo ou tráfico, avalia a juíza.
— Às vezes, o agressor ameaça uma vida inteira e não mata. Às vezes, nunca ameaçou e mata. Nosso trabalho é perceber o risco, e isso só a experiência nos ensina — completa a titular da Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher (Deam) de Porto Alegre, delegada Rosane de Oliveira Oliveira, com mais de 15 anos de enfrentamento à violência contra a mulher.
Quando o risco é evidente, o caminho indicado é o do abrigo. A decisão de aceitar o exílio, no entanto, não é fácil.
— As mulheres ficam muito indignadas de serem elas a abrir mão de toda uma vida, e não os agressores. Nosso trabalho é convencê-las de que é isso ou pode acontecer o pior — afirma Renata Jardim, advogada, mestre em Antropologia Social e membro do Comitê Latino-Americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher.
Com capacidade para 11 famílias, a Casa de Apoio Viva Maria permite até três meses de moradia temporária, para que as vítimas recebam atendimento e vislumbrem a possibilidade de uma vida longe da violência.
Duas em cada 10 retornam aos agressores
Nem todas resistem ao confinamento. Duas em cada 10 mulheres que passam pelo abrigo, em média, voltam para os agressores. A assistente social Saionara Santos Rocha admite que a situação é frustrante. Após cinco anos lidando diariamente com os dilemas de mulheres agredidas, aprendeu a aceitar quando elas ainda amam seus companheiros. E adotou o discurso da liberdade, que costuma funcionar:
— Você está aqui não para se separar, está aqui para não morrer — aconselha.
Além de abandonar a antiga vida, as abrigadas têm de obedecer a regras rígidas quando entram na Casa. Todos os celulares ficam dentro de um cofre do início ao fim da estadia, as ligações do telefone fixo são monitoradas, as saídas têm de ser autorizadas, as refeições têm horário determinado, e a limpeza do abrigo é compartilhada. Os filhos e o prório quarto, com banheiro anexo, são responsabilidades individuais.
Nos 23 anos de existência, a Viva Maria recebeu 1,1 mil mulheres. Dentre elas, uma morreu enquanto estava abrigada. Assunto que ninguém por lá gosta de comentar, mas que está guardado em reportagens de jornais. A morte de Taís Regina dos Santos, em abril de 2012, tornou mais rígida a política da Casa de Apoio Viva Maria.
PERFIL DAS ABRIGADAS NOS ÚLTIMOS 10 ANOS
Faixa etária:
15,2% – até 21 anos
52,9% – de 22 a 33 anos
23,7% – de 34 a 43 anos
8,2% – mais de 44 anos
Atividade da mulher:
26,4% – atividades domésticas
26,8% – trabalho autônomo
16% – emprego com registro
24,6% – desempregada
6,2% – aposentada pelo INSS
Escolaridade:
3,7% – analfabetas
37% – entre 3ª e 5ª série
34,4% – entre 6ª e 8ª série
23,3% – entre 1º e 3º ano
do Ensino Médio
1,6% – superior completo
De onde é encaminhada para o abrigo:
21,6% – Delegacia da Mulher
16,3% – Serviços de Saúde
13,9% – Conselho Tutelar
11,1% – Centros de Referência da Assistência Social (CRAS/CREAS)
37,1% – outros locais
Antes de ser assassinada por dois tiros disparados pelo ex-namorado, Taís havia sido aconselhada a trocar de emprego. Mas ela não quis pedir demissão da lavanderia onde trabalhava. E, enquanto seus três filhos estavam no abrigo, foi baleada dentro do estabelecimento no bairro Moinhos de Vento.
— Muitas vezes a mulher minimiza o risco, não acredita que o agressor possa concretizar a ameaça. E por mais que se oriente e alerte, ela é dona do seu corpo, da sua vontade. Taís foi alertada, mas minimizou. Acabou morta — afirma a terapeuta ocupacional Luciane Ferreira Machado, coordenadora do abrigo nos últimos 15 anos.
A seguir, conheça a história de Giovana, Rosane e Paula (nomes fictícios), que conversaram com ZH no abrigo ao longo do segundo semestre de 2015. Hoje, duas delas já retomaram suas vidas fora da Casa, longe dos agressores. A terceira permanece exilada em busca de um novo rumo.
Fonte: ZH