Na última semana, o Tribunal de Justiça de São Paulo absolveu – ante a perplexidade das vítimas – o estudante de Medicina acusado de estuprar ao menos duas colegas e adulterar bebidas em festas acadêmicas. No fim do ano passado, ele concluiu o curso em uma das mais prestigiosas Faculdades de Medicina da América Latina. A sua punição de suspensão por 18 meses foi bem próxima àquela de uma aluna que colou na prova na mesma instituição.
Ou seja, muito provavelmente em breve estará atuando como médico. A pergunta que não quer calar é como um indivíduo com “tais qualidades morais” pode ser médico, cuidar de pessoas.
A atitude que deveria ser tomada seria a exclusão da universidade, pois crimes éticos merecem punições exemplares para que fatos semelhantes não mais ocorram, em especial quando se trata de violência sexual.
A despeito de poder ter tido avaliações acadêmicas adequadas, qual a avaliação de conteúdos humanistas que permitiriam que ele não colocasse em risco seus futuros pacientes e a sociedade? A mesma sociedade que mantém a USP e para a qual, se supõe, esta deva retribuir com profissionais qualificados e que protejam a população.
Quando em 2014 vieram à tona as denúncias de estupro e assédio moral que abalaram a Faculdade de Medicina da USP, pelo depoimento emocionado de algumas vítimas que se dispuseram a se expor para dar um basta na silenciosa e continuada agressão e abuso sofridos, a perplexidade tomou conta da instituição como se este fosse um fato isolado. Mas não é.
Atendo vítimas de abusos sexuais há 15 anos no Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP, entre elas estudantes universitárias que chegam constrangidas e traumatizadas, muitas delas sem coragem de expor seu sofrimento para sua família e que, com frequência, se mantêm no mesmo ambiente que a revitimiza no cotidiano, sofrendo bulliyng pelos próprios colegas. Enfim o sonho de ser médica prevalece.
É função de uma escola proteger seus alunos contra abusos sexuais e outras violações de direitos humanos e punir aqueles que não “conseguem” ter uma convivência que respeite os padrões éticos e morais da sociedade que futuramente eles pretendem servir.
No caso em tela isto não ocorreu.
O estudante tinha antecedentes, como policial, quando matou um indivíduo. Isto não foi um fator que impediu sua entrada na Faculdade de Medicina. Mas, mesmo com as agressões perpetradas como estudante, a USP e seus pareceres jurídicos não o consideraram um risco.
Não podemos aceitar leniência no trato com a violência sexual. Não podemos aceitar a culpabilização tácita das vítimas. É preciso uma atuação mais contundente, não apenas neste caso, mas em tantos outros relatados, alguns inclusive em CPI aberta na Assembleia Legislativa de São Paulo. Só isso pode fechar a ferida e evitar que novos episódios ocorram.
* Coordenadora do Núcleo de Atendimento à Violência Sexual do Hospital das Clínicas.
Fonte : Carta Capital