“Eu acredito firmemente em uma democracia deliberativa; onde você fala, mas você também ouve. Você vence o outro lado com as diferenças intactas, mas você também vence junto de forma significativa”.
Essas são as palavras de Karuna Nundy, advogada da Corte Suprema da Índia, proferidas desde seu escritório em Nova Délhi neste mês.
Em anos recentes, Nundy, que se especializa em disputas de direitos humanos, vem lutando em alguns dos casos mais polêmicos e desafiadores da Índia. Ela foi atrás de justiça para as vítimas da tragédia de Bhopal, afetadas pelo vazamento de gás em 1984, lutou pelo direito à liberdade de expressão online e contribuiu para o esboço da agora conhecida “leis anti-estupro da Índia” decretadas após a violação coletiva de 2012 que resultou na morte de uma estudante de 23 anos em um ônibus em Nova Délhi.
Depois de cursar direito em Cambridge e participar de um programa de bolsas na Universidade de Columbia, em Nova York, Nundy, que também é advogada comercial, trabalhou em tribunais internacionais e nas Nações Unidas antes de retornar para a Índia há mais de uma década.
Nundy, de 39 anos, recentemente falou ao The Huffington Post sobre a sua carreira no Direito, as suas maiores realizações até o momento e sua luta pelos direitos das mulheres na Índia, entre outras questões. Veja abaixo trechos editados da conversa.
Sobre a sua escolha em tornar-se advogada da Corte Suprema da Índia:
“Eu tinha certeza que o meu trabalho precisava ser a minha vocação; vir de um propósito profundo. [Como estudante] eu percebi que o mais importante para mim era impactar o mundo diretamente. Eu me lembro do meu primeiro dia de aula de direito em Cambridge. Eu descobri que tinha uma mente. Era como estar em casa.
[E sobre o meu retorno à Índia], muitos foram os motivos que me levaram a tomar essa decisão. Eu pensei seriamente em atuar como advogada na Inglaterra, mas no fim senti que era aqui que eu poderia fazer a minha maior contribuição – não apenas com o meu trabalho em direitos humanos, mas também como advogada. Eu senti que havia uma necessidade nesse lugar. Eu compreendo profundamente as variadas camadas [aqui], em termos de linguagem, de nuanças e informação.
A Corte Suprema da Índia tem uma das mais amplas jurisdições de qualquer tribunal no mundo. Eles podem, pela Constituição, ouvir uma ordem judicial de qualquer tribunal em qualquer etapa. A Corte Suprema pode intervir diretamente; eles podem fazer cumprir toda a justiça. Para mim isso foi particularmente atrativo.
É também um tribunal de ideias, tanto quanto é de fatos. Ele tem sido líder quando se trata de direitos econômicos e sociais, por exemplo”.
Sobre a sua luta contra a injustiça e os seus casos mais gratificantes:
[Nota do Editor: No início do ano, a Corte Suprema Indiana anulou uma lei controversa que fazia com que a publicação de comentários “ofensivos” nas redes sociais fosse um crime. O tribunal regulou que a emenda era inconstitucional e uma restrição à liberdade de expressão. Nundy foi uma das advogadas que representou os ativistas nas audiências.]
“Muitas pessoas estavam sendo presas e processadas em casos de liberdade de expressão online. A lei fez com que o discurso considerado irritante ou inconveniente para alguns fosse crime. Qualquer um que tivesse uma queixa poderia falar para um policial: ‘eu acho isso irritante’. Assim, ele poderia prendê-lo por isso. Mas o que exatamente é ‘irritante’ não estava definido em nenhum lugar. Tudo parecia muito bobo.
Eu não achava que a lei fosse passar. Mas passou e foi usada. Foi usada frequentemente.
[Anular essa lei] foi algo bem gratificante, com um impacto direto considerável.
Os casos de Bhopal foram um tipo de trabalho mais devagar e difícil. É um símbolo da injustiça, uma ferida dolorosa na consciência do mundo. Nós recentemente reabrimos o acordo extremamente injusto e a Corte Suprema nos ouvirá algum dia.
Eu aprendi a ver o valor da persistência diante uma oposição fortíssima.
Nós tivemos duas grandes vitórias até agora. Uma foi conseguir água potável para as comunidades na região, cortando a água subterrânea que possuía cancerígenos e outros químicos que estavam deixando as pessoas muito doentes. A outra vitória foi um decreto extensivo para cuidados médicos bons e gratuitos para essas pessoas. Quando se trata da aplicação da lei, no entanto, ainda existem batalhas.
Em minhas etapas mais desanimadoras, as pessoas de Bhopal me disseram: ‘você nos ajudou a manter este caso vivo’. Ter participado nesses casos também me transformou. Isso tem me ajudado a ver o valor em algo que não tem um impacto imediato.
Ao invés disso, eu aprendi a ver o valor da persistência diante uma oposição fortíssima. O que está sendo desafiado aqui é a relação corporativa e governamental, da forma mais corrupta. É bem difícil vencer essa barreira”.
Sobre a indignação pública após o assassinato de 2012 e o estupro coletivo da estudante de Nova Délhi:
“Homens e mulheres, jovens e adultos, eram tantas as pessoas que foram às ruas. Délhi era o epicentro do movimento, mas estava acontecendo em todas as partes. As pessoas diziam ‘basta, já não dá mais; isso não está certo para nós como sociedade’.Foi incrivelmente comovente.
Sendo alguém que lida com direitos constitucionais, eu tenho uma compreensão de que os seus direitos estão intrinsicamente ligados aos direitos dos outros. Você acredita nisso e trabalha para isso todos os dias. Então quando existe uma multidão de pessoas que dizem ‘sim, nós também fazemos parte disso. Nós apoiamos essa ideia também, quer afete você pessoalmente ou não’ (…) Para mim, isso foi algo sensacional”.
Sobre a narrativa da “pobre mulher indiana”:
Na mídia internacional, vemos uma questão problemática prevalecente. ‘Vejam essas pobres mulheres da Índia. Nós precisamos salvá-las’.
Os protestos [relacionados à morte de uma estudante em 2012] foram especialmente inspiradores já que as pessoas que se levantaram em solidariedade com a Índia ao mesmo tempo também olhavam para a patriarcado nas suas próprias comunidades e nações. Essa resposta foi realmente bem-vinda.
É importante reconhecer que existe patriarcado e estupro pelo mundo afora, em cada país, em casa bairro”.
Sobre ter escrito o esboço com as novas leis “anti-estupro”, após o clamor público:
“Quando todas essas pessoas foram às ruas, várias coisas boas aconteceram. O Comitê Verma [um painel apontado pelo governo com a tarefa de reformar as leis anti-estupro da Índia] foi instalado e todas as pessoas envolvidas nesse comitê disseram ter passado por essa incrível jornada, tornando-se feministas no final.
O comitê consultou um vasto número de pessoas, inclusive eu. Então eles chegaram a um relatório que incluía um projeto de lei. Aquele documento é um manifesto pela liberdade. Foi realmente inspirador.
Mas embora isso tudo tenha sido comissionado pelo governo, no fim eles disseram: ‘Sim, muitíssimo obrigado’ e guardaram tudo. Você pode imaginar o choque.
Um decreto foi emitido, mas foi muito problemático. Nesse momento, várias pessoas que tinham participado no movimento de 2012 envolveram alguns de nós advogados. Nós então redigimos vários esboços da lei, inspirados pelo Comitê de Verma e outros lugares. [Nota do Editor: Este trabalho todo eventualmente deu lugar a promulgação da Lei Criminal (Emenda) Ato de 2013, coloquialmente chamado de lei ‘anti-estupro’]
Após tudo isso, existiram algumas vitórias e alguns fracassos importantes. Em termos de vitórias, uma das conquistas era ter certeza que os policiais respondessem criminalmente quando reportavam um ato de violência sexual. Se um oficial não reportasse uma reclamação de abuso sexual, eles mesmos seriam criminalmente responsáveis agora. Infrações tais como perseguição e voyeurismo também foram incluídas [no código penal].
Em termos de derrotas — bom, existiram várias. Nós ainda temos um longo caminho pela frente”.
Sobre o que ainda precisa acontecer:
“Atualmente, nós estamos trabalhando em um projeto de lei para as mulheres em Délhi [conhecido como ‘Womanifesto’ – ou “Mulherfesto” em tradução livre].
Um dos principais aspectos no manifesto é a implementação dessas leis que foram decretadas.
O que realmente precisamos é que cada órgão administrativo do governo olhe o que pode ser feito nessa luta. Não é só abordar o problema da violência, mas também outras questões relacionadas. Nós precisamos enviar meninas às escolas, ajudar as garotas nas escolas, certificar que as mulheres tenham o mesmo acesso aos cuidados médicos, etc.
Os órgãos de governo precisam olhar para tudo isso e se perguntar: O que nós precisamos fazer para que as coisas aconteçam? Precisamos de mais mesas e cadeiras? Precisamos mudar as normas de minha organização? Precisamos contratar mais oficiais mulheres? Precisamos dar mais treinamento de gêneros? Os departamentos governamentais precisam se unir [e resolver isso].
Uma prioridade deveria ser a implementação de um programa de educação pública bem intensa para remover o patriarcado. O patriarcado é um tema de saúde pública.
Nós também precisamos ensinar as crianças sobre o consentimento e a sexualidade. As crianças precisam saber que o gênero faz parte de um continuum e que a sexualidade também é um continuum. (…) Essas coisas podem ser feitas.
Criminalizar o estupro marital é uma outra prioridade principal. Doutrinalmente na minha mente, está bem claro: estupro é estupro. Mas existe muita oposição para fazer com que o estupro entre casais seja crime. Para mim, isso é uma questão constitucional. E por ser uma questão constitucional, é algo que as cortes devem agir [embora] eles tenham se negado a fazer isso em várias ocasiões”.
O patriarcado é um tema de saúde pública.
Sobre a importância da “democracia deliberativa”:
“Eu acredito firmemente em uma democracia deliberativa; onde você fala, mas você também ouve. Você vence o outro lado com as diferenças intactas, mas você também vence junto de forma significativa”.
É por isso que eu fiz o Reddit AMA no início do ano
[Nota do Editor: Nundy foi a primeira advogada indiana a fazer AMA.] É por isso que eu escrevo; é por isso que eu tuito; e é por isso que eu apareço na TV.
É através de conversas que nós podemos realmente encontrar soluções. É através dessas conversas que as mentes das pessoas podem mudar.
Pelo mundo afora existe muita polarização na política. Vejam os políticos de direita e os liberais aqui na Índia, ou os democratas e republicanos nos Estados Unidos – as pessoas estão gritando tanto umas com as outras, elas não estão falando umas com as outras.
Acredito que é fundamental incentivarmos as pessoas a falar sobre essas questões fundamentais, como o abuso sexual.
As pessoas precisam começar a ver as mulheres como cidadãs, indivíduos plenos, com o mesmo direito a ter um gosto musical, a trabalhar, a expressar a sua própria sexualidade da forma que elas quiserem. Acho que é algo que surge em conversas, mas que também vem com poder”.
(Tradução:Simone Palma)
Fonte: Brasil Post