A dificuldade enfrentada por uma menina de 10 anos para realizar um aborto em um hospital no Espírito Santo após ser vítima de estupro repercutiu na Câmara dos Deputados. Até o mês de setembro deste ano, a Casa recebeu 22 projetos de lei que tratam sobre aborto, um aumento de 83% em relação às 12 proposições feitas no mesmo período de 2019 (foram 14 em todo o ano passado).
Dos 22 textos em 2020, oito foram protocolados depois que a história da garota virou notícia, em 16 de agosto. Na ocasião, a Justiça precisou autorizar o procedimento cirúrgico porque o Hospital Universitário Cassiano Antônio Moraes negou à criança o direito de interromper a gravidez. Apesar da repercussão, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) baixou uma portaria no final de agosto obrigando que médicos comuniquem à polícia todos os pedidos de aborto que cheguem a eles.
O que dizem os projetos? A maior parte dos textos protocolados neste e no ano passado tentam restringir o direito ao aborto: essa é a característica de todas as 14 propostas feitas até o final de 2019 e de 16 projetos em 2020. Os dados, confirmados pelo UOL, são da plataforma de monitoramento legislativo Elas no Congresso, que usou como critério as proposições cujo tema central são as palavras “aborto” e “nascituro”, o ser humano concebido mas ainda não nascido.
O PL 788, por exemplo, foi proposto no ano passado pela deputada e pastora Flordelis (PSD-RJ). Ela pede que se “reconheça desde a concepção a dignidade e natureza humanas do nascituro, conferindo-se ao mesmo plena proteção jurídica”. Se aprovada, a medida estenderia ao feto os direitos reservados aos já nascidos, impedindo o aborto nas ocasiões previstas pela Constituição: quando a mulher é vítima de estupro, corre risco de vida ou o feto é anencefálico (ausência da maior parte do cérebro e da calota craniana).
A maioria dos projetos de lei foram apresentados por parlamentares homens: 19 das 36 proposições nesses dois anos. Eles também assinam outras duas propostas coletivas sobre o assunto. O campeão é o deputado Capitão Augusto (PL-SP), com nove projetos desde 2017. Em um deles, ele pede “reclusão de três a seis anos” a quem “provocar aborto em si mesma ou consentir que outrem lho provoque”. Atualmente, a pena é de um a três anos de reclusão.
“A lei é muito branda”, disse o parlamentar ao UOL. “Em 24 anos de PM, nunca vi ninguém ser preso pela prática de aborto, que não deixa de ser homicídio. Como católico, acredito que a vida existe a partir da concepção.” “Como não se pune de forma rigorosa, aparecem muitas clínicas clandestinas de aborto. Essa pessoa tem de ser responsabilizada”, afirma o deputado. Ele prefere, no entanto, não mexer nos casos já previstos em lei.
“Eu não me meto onde a lei já permite porque, como foi o caso da menina de 10 anos, quem tem de decidir é a criança e a família. Obrigar uma criança a ver sua barriga crescer por 9 meses seria imputar tortura.” Capital Augusto, deputado federal
Essa não é a opinião da deputada Chris Tonietto (PSL-RJ). Em seus dois primeiros anos de mandato, iniciado em 2019, a parlamentar de 29 anos apresentou oito projetos sobre o tema, todos tentando restringir o direito ao aborto.
Um deles, o 2893/19, sugere revogar o artigo 128 do Código Penal, que livra de punição o médico que interromper a gravidez por motivo de estupro ou para “salvar a vida da gestante”. “O aborto é sempre um crime”, afirmou a deputada ao UOL. “O art. 128 exclui a pena, mas o delito do aborto subsiste.” Ela diz que admitir exceções “significa dizer que determinados seres humanos, a exemplo da gravidez em decorrência de estupro, são de categoria inferior”.
“No caso da menina de 10 anos, ela, que já tinha sofrido a dor inimaginável dos abusos ao longo de anos, passou a contar com uma outra espécie de dor com a realização do aborto: a de ter um bebê inocente assassinado em seu ventre.” Chris Tonietto, deputada federal
Proteção à mulher Se em 2019 todos os projetos apresentados tentavam restringir o direito ao aborto, em 2020 seis buscam proteger as mulheres. Um deles oferece assistência médica a grávidas durante a pandemia do novo coronavírus, “incluindo as que tiveram aborto ou perda fetal”.
Outro dá à criança ou adolescente o direito de excluir suas informações pessoais de sites de pesquisa ou de notícias. Já o de número 4297 foi inspirado no caso da criança capixaba. O projeto cria uma zona de proteção no entorno das unidades de saúde para evitar protestos contra gestantes e médicos, como o cerco formado por ativistas conservadores que obrigaram a criança de 10 anos a entrar no complexo pelo porta-malas.
“O projeto foi inspirado por uma decisão da Justiça na Inglaterra”, explicou ao UOL a deputada Sâmia Bonfim (PSOL-SP), uma das autoras do texto. “A proposta não impede que haja violência fora da unidade de saúde ou nas redes sociais, mas resguarda a equipe médica e a família enquanto estiverem no hospital.” Ela atribui ao “tema ainda tabu no Brasil” o fato de existir apenas um projeto de lei em tramitação que descriminalize o aborto.
De acordo com o Elas no Congresso, a única proposta de descriminalização na Câmara é a 882/2015, do então deputado Jean Wyllys (PSOL-RJ). Ela dá à mulher “o direito a realizar a interrupção voluntária da gravidez”. O procedimento, autorizado nas primeiras 12 semanas de gestação, seria realizado por médico “nos serviços do SUS (Sistema Único de Saúde) e na rede privada”, diz o texto, arquivado em 2018 e desarquivado em fevereiro do ano passado. A proposta, no entanto, foi apensada ao PL 313/2007, que trata de planejamento familiar a fim de, entre outras coisas, restringir o direito ao aborto.
Fonte: UOL