A historiadora britânica Mary Beard (nascida em Shropshire, em 1955) é uma mulher multifacetada: especialista em Roma antiga, professora da Universidade de Cambridge, feminista, autora de pelo menos 18 livros e apresentadora da série documentais da BBC sobre o Mundo Antigo.
Apesar de ser, talvez, a historiadora mais popular do Reino Unido, e de ter recebido todo tipo de prêmios e condecorações, ela é ao mesmo tempo uma mulher acessível e simpática. Ela estava atrasada para esta entrevista para a BBC Mundo (serviço em espanhol da BBC) pelo Zoom e decidiu compensar cedendo um pouco mais de seu precioso tempo.
Na entrevista, Beard fala sobre alguns de seus tópicos favoritos — desde o que todos nós temos a ver com os antigos gregos e romanos até qual foi e é o papel público das mulheres.
A seguir, veja os principais trechos da entrevista:
BBC Mundo – Como você se tornou uma acadêmica especializado no mundo clássico?
BBC Mundo – Claro que não. Você não é nada chata.
Beard – Fui para uma escola muito tradicional e antiquada, onde aprendíamos latim e grego, e era muito boa nisso. E quando você tem 12 ou 13 anos você gosta de coisas nas quais você é muito bom. Meu interesse por coisas antigas vêm de tão cedo quanto consigo me recordar, mas me lembro especialmente de quanto eu tinha cinco anos.
Morávamos no interior, a centenas de quilômetros de Londres, e minha mãe achou que precisávamos ir para Londres. Fomos ao Museu Britânico, que era então muito antiquado.
Isso foi há 60 anos e todas as vitrines eram muito altas e muito difíceis de serem vistas pelas crianças. Estávamos olhando para coisas egípcias — não múmias, coisas da vida egípcia diária de milhares de anos atrás.
Atrás de uma das caixas, minha mãe viu um pedaço de bolo ou pão egípcio carbonizado de 4.000 anos. E eu queria muito ver, imagina, um bolo tão velho! Mas eu não conseguia. Minha mãe tentou me levantar, mas ela carregava muitas bolsas.
Então um homem veio e perguntou se eu queria ver algo. E eu disse que sim, queria ver aquele pedaço de bolo ali atrás. Ele pegou as chaves, abriu a vitrine e tirou o bolo. E foi incrível para mim.
E isso sempre me fez pensar que não só o mundo antigo é incrível, mas que sobrevivem coisas que você nunca teria imaginado. E também que existem pessoas que podem te ajudar a entendê-lo. Foi muito emocionante.
BBC Mundo – Por vários anos, você foi a única professora mulher em Cambridge.Em algum momento temeu que isso não fosse para você?
Beard – Não. Eu entendo que muitas pessoas podem recuar. Mas tenho um grande espírito de contradição.
A ideia de que eu era a única mulher pode parecer incrível hoje. Mas na época não parecia tão estranho. Quer dizer, você sabia que tinha que lutar e que tinha algo pelo que lutar, mas também que havia pessoas que estavam do seu lado.
Alguns dos meus colegas homens me apoiaram muito, e acho que tive sorte porque eles queriam mais mulheres. Eles eram muito ruins em encontrá-las, mas queriam ajudar.
Dito isso, tenho certeza de que alguns não queriam.
Lembro-me de quando estava fazendo meu doutorado, encontrando homens que diziam que havia mulheres demais em Cambridge. Muitas mulheres! Senti que estava sozinha, mas também senti que muitas pessoas me encorajaram.
E tive muita sorte porque sei que isso não acontece com todo mundo.
BBC Mundo – Para quem está na América Latina, os gregos e romanos antigos podem parecer muito distantes. Em que sentido tudo isso também se relaciona com eles?
Beard – De várias maneiras. Acho que é realmente algo internacional. É verdade que os romanos vieram para o Reino Unido, mas não é por isso que os estudo, nem é o que me estimula. Nem para pessoas na América do Norte ou Austrália.
Acho que é porque, surpreendentemente, é um tema muito democrático, é algo que todos podemos compartilhar ou sobre o qual todos temos perspectivas diferentes. Existem maneiras de isso ser uma herança para todos, não apenas para aqueles que vivem no que um dia foi o Império Romano.
Em termos de uma linguagem global e dos debates políticos que todos nós compartilhamos agora, estudar o Mundo Antigo ensina a você as origens desses debates. Ensina por que as ideias de liberdade, democracia ou ditadura sempre foram controversas e como foram debatidas.
Onde quer que estejamos neste mundo, até certo ponto herdamos as ferramentas que os gregos e romanos inventaram para falar sobre essas coisas.
Não quero dar a impressão de que toda a cultura mundial remonta aos gregos e romanos, porque não é assim, felizmente existem muitas fontes de cultura mundial.
Mas a cultura clássica greco-romana é uma fonte importante. É muito difícil começar a entender a longa história do imperialismo no mundo sem estudar tanto o Império Romano quanto o da China.
Seria terrível se pensássemos que esta herança da Grécia e de Roma é a única coisa que nos fez o que somos, porque absolutamente não é. As religiões também desempenham um grande papel em por que o mundo é do jeito que é. Mas abre um sentido muito importante de onde vem uma linha fundamental da cultura mundial.
Não acho que estudo a Roma e a Grécia antigas porque quero ser como os antigos gregos ou romanos. Claro que não, nem acho que eles tenham as respostas, nem quero admirá-los particularmente. Não os admiro, eram horríveis!
BBC Mundo – Seu livro “Mulheres e poder: um manifesto” explica que nem tudo que herdamos deles, nossas tradições e costumes que remontam a eles, são necessariamente algo de que devemos nos orgulhar. Explica, por exemplo, como a dificuldade que nós mulheres temos em ser levadas a sério quando falamos em público pode ser rastreada até esta Idade Clássica. E dá um exemplo muito notável do “primeiro exemplo documentado na tradição da literatura ocidental de um homem dizendo a uma mulher para ficar quieta”.
Beard – Acontece no início da Odisseia, de Homero. A Odisseia é a história do retorno de um “herói”, coloco entre aspas, de Odisseu retornando da Guerra de Tróia, onde os gregos foram vitoriosos, e ele está voltando para casa, para sua esposa e família, e leva 10 anos para voltar de Tróia.
Passa 10 anos lutando na guerra e 10 anos voltando da guerra. E parte de sua viagem de volta fica atrasada porque ele se envolve com mulheres que não deveria. Mas também porque existem tempestades e monstros.
Enquanto isso, em casa, sua esposa Penélope mantém o palácio, cuida dele, e também cuida de seu filho Telêmaco. E um dia desce de seu quarto para a área pública do palácio e ouve um bardo cantando canções tristes sobre como os heróis estão sofrendo ao voltar de Tróia. E ela disse: “Você pode cantar uma música mais animada? Isso é um pouco deprimente.”
Telêmaco, o filho dela, que é adolescente, ouve-a e diz: “Mãe, cale-se. Discurso público é assunto de homem. Volte lá para cima”. E ela faz isso.
E Telêmaco é um adolescente bastante ineficaz, enquanto Penélope é uma mulher muito inteligente. O que é particularmente impressionante para mim é que parece que na história da Odisseia esta é a única maneira que Telêmaco tem para se tornar um homem, amadurecer de menino para homem.
A única maneira de fazer isso é silenciando sua mãe. E isso, eu acho, torna ainda mais assustador para mim. E temos que aprová-lo, isso é o que significa ser um homem.
BBC Mundo – Você menciona duas exceções em que as mulheres podiam falar em público: quando o faziam como vítimas e quando tinham que defender um assunto de seu interesse. E assim, por séculos, as questões que afetam as mulheres se tornaram questões de “nicho”. Isso lembra o que diz a autora Caroline Criado Pérez no livro Mulheres invisíveis: que tudo o que diz respeito ao homem é considerado universal, enquanto as questões das mulheres são apenas isso: questões de mulheres.
Beard – É assim mesmo. E, claro, você tem sentimentos ambivalentes sobre isso, porque você olha para as mulheres que defenderam os direitos das mulheres e pensa: bem, fico muito feliz que tenham feito isso, alguém tem que fazer isso.
Uma parte de mim está feliz que as mulheres tenham voz para falar em seus próprios interesses. Mas também me faz pensar em como a voz pública das mulheres permanece limitada.
Veja, o Reino Unido teve duas primeiras-ministras, mas nunca teve uma ministra das finanças. Teve brevemente uma ministra da Defesa, mas se você olhar para a importância das mulheres no governo nos últimos 30 anos, são ministras da Cultura, da Educação, da Saúde, coisas de mulheres.
BBC Mundo – Alguma vez você já sentiu que não foi levada a sério por ser mulher? Pergunto porque você parece ter um ótimo senso de humor e muitas vezes as mulheres acreditam que para sermos levadas a sério temos que ser muito sérias, sempre ser muito sérias.
Beard – Certamente agora não sinto que não sou ouvida, ou não é algo que me acontece com frequência.
De vez em quando, você está em uma entrevista a três, com dois homens, e vê como eles desenvolvem um comportamento de conluio entre eles e é difícil argumentar.
Mas seria inaceitável eu protestar por não ter voz pública. Quando eu era muito mais jovem… Olha, tem aquele desenho da Srta. Triggs que coloquei no meu livro (Quase 30 anos atrás, a cartunista Riana Duncan capturou a atmosfera sexista das salas de reuniões com um cartoon mostrando um encontro entre cinco homens e uma mulher, a Sra. Triggs, no qual o homem encarregado de liderar a reunião diz: “Essa é uma sugestão excelente, Srta. Triggs. Talvez um dos homens aqui gostaria de fazê-la”).
Eu já passei por essas situações quando era uma acadêmica muito jovem. A maioria das mulheres sabe disso.
BBC Mundo – E o que você acha da responsabilidade dos homens? Às vezes, pode ser difícil não sentir raiva. Obviamente, você deseja se relacionar com os homens, eles são uma parte importante de nossas vidas. Como você navega nisso? Como você passa de uma experiência pessoal negativa para um pensamento com uma perspectiva mais ampla?
Beard – É complexo. Mas sempre separei fortemente a posição política das pessoas de minha amizade com elas.
Tenho muitos amigos cujas posições políticas são muito, muito diferentes das minhas. Acho que é uma questão do que minha mãe chamava de “odiar o pecado, mas não o pecador”.
O que quero combater e eliminar é esse tipo de sexismo e misoginia. Não estou interessada em trancar o sexista em um quarto e levar a chave comigo. Quero que as pessoas, os homens, vejam — acho que muitos querem — que o mundo é mais gentil e justo, se não for sexista. É melhor para todos, não apenas para as mulheres.
E eu acho que o padrão sexista e misógino de grande parte da cultura mundial é muito injusto com as mulheres, mas não é ótimo para meninos e homens também.
A masculinidade tóxica não é algo agradável de se ter. Mesmo agora você pode ir para uma escola primária e ver no quintal uma menina que cai e machuca o joelho e a professora vai e a abraça, ou ela teria feito isso antes do coronavírus, e colocaria alguns curativos nela. E a garota chora. Se um menino faz isso, ela diz “não, não chore, meninos não choram.”
E este é um exemplo pequeno e trivial. Mas acho que minha posição seria que, embora eu vá lutar contra qualquer misoginia que encontrar, o farei em nome de todos. Acho que a masculinidade é o inimigo, não os homens. Eu moro com um, pelo amor de Deus!”
BBC Mundo – Vou te contar uma charada. Pai e filho sofrem um acidente enquanto dirigem…
Beard – Eu já sei conheço (e dá risada)..
BBC Mundo – (A charada é a seguinte: Um pai e seu filho viajam sofrem um grave acidente. O pai morre e o filho é levado ao hospital porque precisa de uma complexa operação de emergência, para a qual é chamada a pessoa mais experiente do centro cirúrgico. Mas na sala de cirurgia diz: “Não posso operá-lo, é meu filho.” Como isso é explicado?]
Beard – Quando me disseram pela primeira vez, demorei muito para encontrar a resposta. E foi muito educativo, porque mostra que mesmo tendo uma boa base teórica feminista, você ainda faz parte de um mundo que discrimina as mulheres e faz diferentes suposições sobre elas. E, bem, finalmente encontrei a resposta, mas precisei de ajuda. É uma charada muito boa.
BBC Mundo – Como são os preconceitos inconscientes que todos nós temos?
Beard – Acho que consegui reconhecê-los melhor, mas não acho que os superei completamente. Lembro-me de uma vez, há 15 ou 20 anos, que estava em um avião e chegou o momento em que vocês esperam o piloto dizer boa tarde, senhoras e senhores, vamos voar tantos metros. E o anúncio começou, mas era uma mulher.
E me lembro que, por meio segund, pensei: por que a aeromoça está fazendo o anúncio? Porque não associei que a voz da mulher fosse a do comandante. Mas eu lutei por isso! É o que sempre quis que as pessoas pudessem fazer.
BBC Mundo – Você conta que a ex-primeira ministra Margaret Thatcher mudou o tom de voz para ficar mais parecido com o de um homem…
Beard – Sim, e é absolutamente fascinante. Se você for ao Google e assistir a alguns de seus discursos antigos, verá isso acontecer diante dos seus próprios olhos.
Ela teve aulas de voz porque disseram que ela tinha que baixar o tom para ser levada a sério, para ser considerada como alguém com autoridade. Porque ouvimos autoridade na voz de um homem de uma maneira que não ouvimos na voz de uma mulher, especialmente em vozes femininas agudas.
BBC Mundo – Você também usa uma foto em que Hillary Clinton e Angela Merkel são vistas vestidas basicamente iguais, em um terno escuro. Mulheres com poder achavam que precisavam parecer mais masculinas para serem levadas a sério. Mas isso resolve o problema?
Beard –Não, não resolve. Não gostaria de criticar mulheres como Clinton ou Merkel que fazem isso, que adotam modos muito masculinos, porque acho que se às vezes é a única maneira de lidar com isso. Quem sou eu para criticar?
Mas quando você começa a ver e pensar sobre isso, você vê algo aqui que não é produtivo, porque para ser levada a sério, uma mulher tem que parecer mais ou menos homem, então isso implica que a mulher está sempre em posição de fingir, sempre fingindo.
Para algumas pessoas, terá valido a pena. Tenho certeza de que Thatcher diria que valeu a pena mudar a voz. Mas isso pode resolver o seu problema, mas não resolve “o” problema.
Mas então você enfrenta algo muito mais difícil, você tem que mudar a maneira como pensamos sobre o poder. Mas acho que é muito difícil saber exatamente o que fazer.
É bom apontar essas coisas, é um pouco como a consciência feminista dos anos 1970. Quando você começa a ver isso, você está mais sintonizada. Você provavelmente está mais apta a resolver o problema.
Mas certamente não tenho uma lista de coisas que podemos fazer para melhorar as coisas. E isso de certa forma me preocupa. Eu não tenho as respostas.
Fonte: BBC Brasil