Após dez anos da Lei Maria da Penha, um projeto que altera parte do trâmite de atendimento e proteção às mulheres vítimas de violência doméstica tem avançado no Congresso e despertado polêmica no país.
O impasse está no trecho que autoriza delegados de polícia a concederem medidas de proteção às vítimas –como a proibição do agressor de se aproximar, por exemplo. Hoje, essa prerrogativa cabe apenas ao juiz.
Segundo o projeto, a possibilidade ocorreria diante de situações de “risco iminente” à vida e integridade física e psicológica da mulher. Nesses casos, o delegado poderia conceder a medida, desde que o juiz seja comunicado em até 24 horas. Em seguida, caberia ao magistrado manter ou rever a decisão.
Aprovado na Comissão de Constituição e Justiça do Senado na última semana, o projeto está na pauta do plenário da Casa, mas ainda não há data prevista de votação.
Associações de defesa dos direitos das mulheres, no entanto, dizem não terem sido consultadas e têm feito pressão para que haja mais tempo para discutir a proposta. “A lei foi criada de maneira democrática, ouvindo a todos. Essa mudança está sendo feita de forma totalmente inversa”, diz Michele Savicki, coordenadora de projetos da Themis, organização que atuou na elaboração da lei.
Para essas entidades, a proposta é inconstitucional e pode gerar questionamentos na Justiça. Pela Constituição, só o Judiciário pode decidir sobre medidas que tratam de direitos, como o de ir e vir.
Além do debate sobre a interferência no papel dos juízes, Ana Paula Lewin, do núcleo da mulher da Defensoria Pública de São Paulo, também tem dúvidas de como a mudança seria efetivada. “Como vai ser cumprida? A delegacia tem equipes suficientes?”, questiona.
Para Lewin, a proposta acaba por afastar a violência doméstica de uma resolução conjunta entre várias instituições. “Quando trazem a discussão só para dentro da delegacia, só se pensa em criminalizar a questão.”
O projeto também foi alvo de resistência de um grupo de senadoras na última semana, que defendiam ampliar a discussão. Elas argumentavam que a medida é “corporativa travestida de protetiva” e citavam a preocupação com a qualidade do atendimento policial nas delegacias.
SEM ACESSO
Delegados contestam e dizem que muitas mulheres hoje sofrem para ter acesso a medidas de proteção e acabam mais tempo sob risco de uma nova agressão.
“Somos a ponta da linha. O que temos observado é uma demora em conceder essas medidas. Não por demora do Judiciário, mas por questão de demanda”, diz Marilda Pinheiro, da Adpesp (associação dos delegados de São Paulo). “A delegacia está aberta, mas o Judiciário, não. A sensação é de impotência.”
Pelo texto atual da Lei Maria da Penha, delegados têm até 48 horas para enviar o pedido das mulheres à Justiça. Em seguida, os juízes têm o mesmo prazo para conceder as medidas protetivas.
A associação que representa os juízes contesta a demora. “A mulher procura a delegacia, e a delegacia não envia [o caso] ao juiz em medida de urgência”, afirma Rayanne Alencar, vice-presidente da AMB (Associação dos Magistrados Brasileiros).
“A falha está nas delegacias que estão desestruturadas para resolver esse trabalho.” Alencar diz ainda que a proposta não está de acordo com a realidade do país.
“Nas cidades do interior, boa parte das delegacias ainda está sob responsabilidade da Polícia Militar por falta de delegados. Por mais bem intencionado que seja, o preparo não é o indicado. Isso coloca em risco a efetividade da medida [de proteção].”
Fonte: Folha